‘Divórcio entre cidadãos e políticos’, ‘crise de representatividade’, ‘desinteresse pela política’ – a legitimação social das democracias não se esgota no voto. Destaco as identidades dos eleitos nas quais vários atributos podem ser convocados. A diversidade da condição social (pobres, remediados ou ricos). A diversidade de tipos de formação e profissão (cargos eletivos monopolizados por juristas, engenheiros ou académicos tendem a afunilar-se na hiperprodução legislativa ou em engenharias sociais). Ou a diversidade das sensibilidades regionais (tanto mais relevante quanto menos ostensiva). Todavia, o sexo, a idade e a cor da pele são determinantes. Estes atributos sustentam o que existe de fundamental e intransmissível (aparentado ao imutável) nas identidades de indivíduos e grupos, condicionando sempre as relações em que participam (tese de Rosa Cabecinhas).

Sexo. Metade da espécie é feminina e outra masculina. A consequência é a necessidade do reforço continuado da maior aproximação possível entre essa característica das sociedades e a distribuição percentual dos cargos eletivos. Por muito que os indivíduos possam ser sensíveis à condição do sexo oposto, apenas as mulheres têm legitimidade para se representarem a si mesmas. Acrescento que a qualidade do jogo democrático depende da perceção de heterogeneidades e tensões internas a cada grupo, sendo que as atitudes e os comportamentos críticos determinantes sobre um dado grupo tendem a resultar da legitimidade dos ‘da casa’, das mulheres, mesmo que os de fora, os homens, não existam para ‘rachar lenha’. Neste domínio, as democracias conquistaram o essencial. As divergências tendem a circunscrever-se aos caminhos a percorrer para se atingir a paridade. Num mundo ideal prescindiria da imposição de cotas em função do sexo, mas a questão é acessória.

Idade. Associada ao sexo, é sintomático que a pedofilia se tenha tornado, em pouco tempo, num dos interditos explícitos da ordem moral das nossas sociedades. Mas a idade tem um valor em si. Apesar de pouco ou nada ter mudado na sua instrumentalização política-partidária-ideológica, as democracias vivem condicionadas pelas transformações dos significados sociais da idade.

Se continua a não ser plausível a legitimidade da defesa dos interesses dos jovens no espaço da representatividade eletiva liderada por um idoso ou vice-versa, a progressiva inversão da pirâmide etária nas décadas recentes – a transição de uma sociedade de novos para outra de gente mais velha – faz-se sentir. Por graves que sejam as crises, tornou-se bem mais difícil mobilizar populações envelhecidas para aventuras revolucionárias. É ainda sensível a transição da saliência de uma retórica política de tipo adolescente das décadas de setenta, oitenta e noventa – a das ‘irreverências’, do ‘cartão jovem’, ‘festas’ e ‘concertos’ – para a centralidade de reformas e pensões, do caminhar para um fim de vida minimamente confortável. O ideário do envelhecimento impôs-se para decidir o sentido dos votos. Problemático é que fazer política com populações envelhecidas no horizonte exige argumentos e atitudes de maior sabedoria, razoabilidade e tranquilidade, desafio maior a um jogo político cuja matriz é do tempo de uma sociedade dominantemente infantil, adolescente e pouco escolarizada.

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No extremo oposto, a instrumentalização política-partidária-ideológica de idades precoces suscita outro tipo de interrogações. Se a noção de juventude invadiu as que eram antes idades adultas, os significados da infância também invadiram os espaços da adolescência. Sabemos ainda que sociedades com pirâmides etárias jovens, agora ou no passado, são as mais propensas a manipulações por radicalismos políticos. Neste contexto, assinalo o ânimo leve, por exemplo, com que se propõe que se passe a votar a partir dos dezasseis anos, com que se realizam com adolescentes experiências de exercício de poder executivo ou como as máquinas partidárias seduzem os que estão na fronteira da infância, em tempos em que a tolerância social, cultural, intelectual – e porque não política – à pedofilia vão ficando para trás.

No percurso de vida, os indivíduos necessitam de tempo para crescer, aprender, estudar, consolidar a sua maturidade. As pessoas podem e devem aprender com critério sobre tudo desde idades precoces, mas salvaguardar a pré-condição da maturidade no exercício efetivo da atividade política (partidária neste sentido) é uma preocupação legítima, diferente em grau mas não em substância das preocupações sociais com a idade de início da vida sexual ativa ou com os casamentos prematuros. É tempo de se repensar a natureza das juventudes partidárias e de nos questionarmos se as organizações políticas e partidárias não usurpam parcelas do espaço cívico que não deveriam ser suas.

Cor da pele. É o atributo mais problemático. Em Portugal, as dissonâncias entre os discursos em prol das minorias e as práticas são verificáveis na quase supressão da diversidade racial na composição dos grupos parlamentares da direita à esquerda. É ostensivo o divórcio entre o espaço de representatividade eletiva, e política em geral, e as características raciais dos atuais portugueses. O tempo tornou bem mais comum um negro casar-se com uma branca do que PS, PCP, Os Verdes ou Bloco de Esquerda – a ululante consciência moral ‘inclusiva’ do regime – integrarem um(a) deputado(a) negro(a).

Para dissipar dúvidas, as sociedades de brancos são para ser governadas por brancos. As sociedades de negros são para ser governadas por negros. Por aí adiante. Não é razoável supor que os sistemas de representatividade política da atualidade possam distorcer essa característica das identidades. Paradoxalmente a relevância social do atributo da cor da pele confere à representatividade política das minorias um significado fundamental, tornando-a numa das marcas distintivas da qualidade de determinados sistemas sociais e políticos. Ela permite destacar as ambições genuínas em integrar a diversidade racial das dissimuladas; os empenhados em aprofundar ideais universais de cidadania dos paroquiais; os sistemas e países democráticos centrais dos periféricos. Reporto-me a indivíduos com papéis políticos e partidários ativos e não a meros figurantes.

Abrir a representatividade política às minorias raciais portuguesas, em concreto aos negros, seria relevante não apenas para torná-los (finalmente…) ‘portugueses de primeira’, mas também um indicador que facilitaria a abertura ou a consolidação de espaços de legitimidade social e política às minorias raciais nas atuais sociedades africanas, em particular a branca e mestiça de ascendência portuguesa. Uma pátria de emigrantes tem de ser sensível a esta questão. Certas práticas acabam por ser recíprocas e os exemplos começam na casa de cada um. Em certos contextos, pode até estar em jogo a dignidade e a segurança das minorias raciais.

Os portugueses comuns, que muito têm feito, pagam ainda a fatura de um cinismo de sobra na retórica da importância estratégica do espaço da lusofonia (dado factual para as próximas gerações) porque o sistema representativo do seu país não evidencia posturas que tornem tal ambição convincente. Em quarenta anos de democracia nada se aprendeu sobre a importância da composição racial do sistema representativo norte-americano.

Na Europa, a norte, o parlamento alemão – de um país com um passado racial traumático, sem tradição imperial em África equiparável à portuguesa, mas que evidencia saber estar consigo mesmo e afirmar-se no mundo de hoje – toma bem mais a sério o atributo da cor da pele na legitimação social do seu sistema representativo da esquerda à direita, atestado pela eleição dos deputados negros Karamba Diaby (SPD) e Charles Muhamad Huber (CDU). A sul, apesar de uma primeira experiência difícil com a ministra negra Cécile Kyenge, o sistema político italiano, de outro país europeu sem herança colonial recente equiparável à portuguesa, empenhou-se em demonstrar uma abertura efetiva às minorias italianas e à heterogeneidade do mundo.

Para que servem 230 lugares no parlamento português?