No passado fim de semana, os explicadores televisivos Marques Mendes e Marcelo Rebelo de Sousa tentaram ensinar ao povo e às elites o que significaria a subscrição pelo PS da candidatura presidencial do antigo reitor da Universidade de Lisboa, António Sampaio da Nóvoa. Mendes disse que seria um “presente a Marcelo”. O próprio Marcelo, sem se dar por presenteado, preferiu falar de uma viragem do PS à esquerda. As duas teses são, de facto, a mesma. Tentemos descodificar estes cálculos.

Marcelo tem razão: o apoio socialista a um Nóvoa de cravo ao peito, tribuno do Congresso das Alternativas e da homenagem a Álvaro Cunhal, pareceria uma viragem à esquerda. Com que utilidade? Só uma: secar o terreno a eventuais importações do Podemos, desta vez por via da eleição presidencial. Até agora, a nova esquerda radical pareceu constrangida em Portugal, onde a velha extrema-esquerda ainda cativa ou contem os professores e os bolseiros que em Espanha e na Grécia fizeram o Podemos e o Syriza. É por isso que Nóvoa, em vez de andar a montar o seu Podemos, está a disputar o patrocínio do PS. Qual o interesse do PS em corresponder ao namoro? O facto é que candidaturas presidenciais independentes sempre tiveram mais espaço para respirar do que os embriões de partido: viu-se com Lurdes Pintasilgo em 1986, com Manuel Alegre em 2006, ou com Fernando Nobre em 2011. Lançada já, uma candidatura desse tipo poderia inspirar o entusiasmo que Costa não inspira e perturbar as legislativas. Para o PS, a adopção de Nóvoa serviria para tirar margem de manobra a outras candidaturas desse tipo, e controlar qualquer dinâmica para-partidária que pudesse ser suscitada pela sua campanha. Tratar-se-ia, na prática, de lhe fazer o que o PSD fez a Fernando Nobre, mas antes da eleição.

Mas Mendes também tem razão. Nóvoa, candidato do PS, não iria talvez longe. Do ponto de vista do PS, porém, não é importante que ganhasse. Ao contrário do que diz Marcelo, Nóvoa não garante qualquer ponte do PS com o PCP e o BE, porque nem Cristo regressado à terra conseguiria reconciliar partidos que nada têm em comum, a não ser a guerra que se fazem há décadas. A hipótese da “unidade de esquerda” só poderia ter um efeito: suscitar escrúpulos no PS “moderado” e facilitar a vitória de um candidato da direita, ou do “centro-direita”, como provavelmente lhe conviria dizer. E o ponto é que este candidato pode, talvez, interessar a Costa, se o PS ganhar as legislativas sem maioria absoluta. Porque um presidente seria provavelmente mais capaz de ajudar fixar o PSD ou parte do PSD numa coligação ou num apoio parlamentar, do que um simples líder do PSD, sujeito à inevitável verrina do partido e em risco de ser apeado a qualquer momento. Em 1985, o Bloco Central acabou com a demissão de Mota Pinto, afundado por aqueles que no PSD deploravam a suposta submissão do vice-primeiro ministro a Mário Soares. Por isso, uma reedição do Bloco Central talvez assente melhor na relação entre Belém e São Bento, do que na relação entre o primeiro-ministro e o seu vice. E eis como uma candidatura de Nóvoa com a chancela do PS, sendo, como diz Marcelo, uma “viragem à esquerda”, é também, como diz Mendes, uma prenda para o candidato que conseguir emergir dos baldios políticos do PSD (e que, sem Guterres no horizonte, bem pode ser Marcelo).

É isto especulação? É. É isto, mais do que maquiavélico, rocambolesco? Também é. Mas não haja dúvida: é isto que pensam as nossas elites. Em relação a Nóvoa, não vale a pena dizer muita coisa. O proto-candidato será, porventura, mais complexo do que as suas mais recentes intervenções dão a entender (a sua ascensão pública aconteceu, aliás, pela mão do presidente Cavaco Silva, que o convidou para orador do 10 de Junho de 2012). Mas uma candidatura de Nóvoa não tem outra substância, aqui e agora, senão as manobras e os cálculos da oligarquia. Não discuto os méritos pessoais do eventual candidato. O que digo é que falar em Nóvoa não é falar dos “cidadãos” e de um “novo ciclo”, como ele aparentemente gostaria, mas de António Costa, de Guterres, de Marcelo e das intrigas com que a velha oligarquia vai tentar prolongar e arrastar o ciclo de sempre, enquanto pelo menos o BCE continuar a verter dinheiro.

Os nossos oligarcas não revelam programas, adiam ou recusam-se a discutir coligações, e calam-se ou cultivam o vazio retórico. Mas nos corredores do poder, o formigueiro oligárquico mexe-se, agita-se, revolve-se, na preparação feroz das soluções que não quer assumir antes de os votos estarem contados. Os comentários de Mendes e de Marcelo são um sinal. Nas próximas eleições legislativas e presidenciais, os partidos parecem tentados a pegar o eleitorado de cernelha, para lhe arrancar o que será um cheque em branco, um voto às escuras. Nunca a política portuguesa foi tão opaca. E é só isso, neste momento, que a candidatura de Nóvoa significa.  

Nota: O eventual candidato António Nóvoa não terá o meu voto, mas o professor António Nóvoa, antigo reitor da Universidade de Lisboa, tem, como sempre, a minha estima e o meu respeito.

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