Hoje ainda, esta semana, no máximo até ao final do mês, o Reino Unido (RU) vai accionar o artigo 50º do Tratado da União Europeia (UE). A autorização final foi dada pelas Casas do Parlamento britânico (“Houses of Parliament”), que aprovaram a “notification of withdrawal bill” (lei da notificação da saída) sem as modificações pedidas anteriormente pela Câmara dos Lordes, para salvaguardar os direitos dos europeus no RU e garantir que o Parlamento votaria o resultado final das negociações.

Theresa May tem agora luz verde para avançar. E avançará em breve.

Pela primeira vez na História de 60 anos da organização, um Estado-membro pede para sair. Este é seguramente um dos momentos mais importantes da vida em comum de 28 países europeus, um evento que pode mudar radicalmente o nosso futuro. Em simultâneo, eleições na Holanda nesta quarta-feira e – já no horizonte – em França, prometem reforçar partidos e programas nacionalistas, fazendo da Europa um lugar mais inseguro.

Eu sei que em Portugal há actualmente assuntos muito mais importantes, como a acusação ao ex-primeiro ministro, o novo banco ou o nome do aeroporto da Madeira. Mas talvez esta semana se justifique um olhar atento ao futuro imediato da Europa, do RU e de Portugal. E, olhando, o que vemos?

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O RU – em risco de divisão. Economias em vias de recuperação da pior crise económica global desde 1929, prestes a destruir as fundações dessa recuperação. E, finalmente, um continente em risco de balcanização. Em qualquer um dos casos, há impensáveis que têm agora, por força da realidade – que tem sempre muita força – de ser considerados. É que o RUnido pode deixar de o ser, a economia europeia pode perder definitivamente o lugar privilegiado que tem no Mundo e a UE pode desagregar-se, levando a uma rápida balcanização do continente.

Mas vamos por partes.

1. Nicola Sturgeon, ministra principal do governo escocês, anunciou ontem que a Escócia levará a cabo um novo referendo com vista à independência. O “muro de intransigência” do governo de Theresa May, explicou, é a razão para essa decisão, que visa permitir aos escoceses escolher entre o “hard brexit”, que implica a saída do RU do próprio mercado interno, ou a continuação na UE como país independente. E embora esse referendo só possa ser convocado com autorização do parlamento de Westminster, o fantasma do fim do Reino Unido volta a pairar sobre o país.

2. 2008 foi o ano em que o Mundo se viu mergulhado numa crise económica à escala global. A UE, uma frágil integração de países e economias demasiado divergentes (consequência quase directa da adesão, num espaço de três anos, de 12 países muito mais pobres do que a média europeia), abanou nos seus fundamentos; a ainda mais frágil união monetária, que os fundadores não quiserem dotar dos mecanismos de solidariedade indispensáveis à criação de uma zona monetária tão óptima quanto possível (passe a ironia), revelou-se inadequada ao objectivo para que foi criada. E contudo, nove anos volvidos, a generalidade dos países europeus recuperou, a União esconjurou a ameaça de uma deflação generalizada na esteira da recessão que grassou em vários países e a zona euro, depois de muito tremer, aguentou-se. A economia europeia, ainda das mais ricas do Mundo, voltou a acelerar, com um crescimento na ordem dos 1,8%; baixo, mas o ponto de partida é alto – o de uma economia que vale mais de 20% da economia global: sendo os europeus da União 7% dos cidadãos do globo, são responsáveis por 20% do comércio mundial. Será porque 28 países europeus vivem num ambiente de mercado interno, com liberdade de circulação de bens, serviços, pessoas e capitais? 28? Só por mais dois anos…

3. Mas mais importante ainda pode ser a implosão, em vias de se consumar, do Estado-nação europeu. A verificar-se, ela será a um tempo causa e consequência do brexit; ou do ambiente geral de cepticismo anti-instituições, a começar pelas políticas; ou do populismo político, sequela inevitável da rejeição do estabelecido (“establishment”); ou ainda da resistência à chegada de (cada vez mais) imigrantes e refugiados. O futuro feio do nacionalismo identitário, securitário e exclusivo faz-se anunciar com fúria e pressa.

Sabe-se que a UE, integração regional num espaço geograficamente reduzido de nações e povos relativamente próximos e similares, representa a melhor resposta possível – o húmus adequado – à excessiva fragmentação nacional da Europa, num Mundo cada vez mais integrado e interdependente. Também se defendeu, com propriedade, “et pour cause” de uma causa antiga e nobre, que a única via para garantir a paz na Europa seria a união dos seus povos turbulentos, desde logo assegurando a consolidação das suas democracias, recuperadas, ou criadas, a tão duras penas.

Mas quando com insistência, como agora, se evoca a possibilidade da fragmentação da UE, esse garante da paz sexagenário, ocorrem-nos outros ainda mais impensáveis pensamentos. Vacila o modelo de Vestefália, cadinho do Estado-nação moderno, identitariamente forjado em torno de referências mais ou menos inventadas, mitos e heróis fundadores, línguas únicas, sistemas de impostos ou de segurança social, moedas com curso nacional forçado e conscrição (“contra os bretões…”): e à contestação supranacional, contra a integração europeia, corresponde a contestação infranacional, através dos movimentos independentistas que percorrem o continente, e ameaçam dividir países de norte a sul, de leste a oeste. Escapa Portugal, e pouco mais.

Um mapa retirado da Internet ironicamente intitulado “Independence Day” (dia da Independência), simula uma Europa em que os movimentos secessionistas levem a melhor. Sim, porque não fazer referendos em todos os países e oferecer novos Estados independentes às regiões que assim o decidam? Segundo a ONU, há 50 países na Europa; passariam a ser 90. E mesmo que isso apenas sucedesse nalguns, a balcanização do continente, mais do que uma hipótese, tornar-se-ia uma séria possibilidade.

Dia da Independência: os balcãs, do Atlântico aos Urais (ou talvez à fronteira russa…).