Uma mãe que não se ama ou até se detesta ainda é um tabu e a ideia, em si mesma, quase intolerável, especialmente em alturas como esta que atravessamos, em que a imagem da mãe é um ícone sagrado e uma imagem intocável. Mas é esta mesma imagem de uma Mãe que inspira crentes em todo o mundo, e inspirou artistas em todos os séculos (cujo altíssimo e derradeiro amor foi materializado na Pietà de Miguel Ângelo), que também nos transporta para outras realidades. E é através de exemplos amorosos que chegamos a lugares onde não existe amor nenhum e as mães maltratam, abusam e negligenciam.

O tema dói sempre, mas mais ainda no Natal porque reabre feridas, deixa as fracturas mais expostas, e vêm-se melhor as cicatrizes e as marcas que ficam gravadas para sempre. Custa falar das más mães, mas é um tema urgente. Por todas as razões e também porque os tribunais de família estão cheios de processos em que as vítimas são as filhas e filhos de mães que não podemos obrigar ninguém a amar.

Conheço casos extremos em que as mães maltrataram e os filhos lhes foram retirados, mas passado tempo alguns destes mesmos filhos foram devolvidos à família biológica. E as mães reincidiram. E em três casos que me são próximos, (por lidar de perto com realidades de grande vulnerabilidade em bairros muito carenciados, mas também em situações de grande fragilidade entre famílias sem qualquer tipo de dificuldade material), estas crianças voltaram a ser maltratadas ao ponto de ficarem com sequelas para o resto da vida. Uma ficou cega, outra tetraplégica e outra ainda com queimaduras graves em mais de metade do corpo. As mães agrediram, violentaram e sacudiram os seus bebés até não poderem mais. Os filhos voltaram então a ser retirados, desta vez sem retorno. Felizmente estes três de quem falo foram adoptados por outras mães e outros pais que cuidam deles com amor. Dentro do azar tiveram sorte, digamos assim. Mas há outros que continuam e continuarão frágeis e sem colo. E também há, para além destes casos mais extremos, outros exemplos de mães que é difícil amar.

Poucos são os que se atrevem a dizer “eu não gosto da minha mãe” porque são palavras duras que devassam sentimentos íntimos e extraordinariamente dolorosos. E, no entanto, muitos sofrem diariamente a erosão de serem filhos de mães difíceis, egoístas, narcísicas, indiferentes, castigadoras, patologicamente instáveis, adictas ou simplesmente incapazes de amar, encorajar, acolher, valorizar e ajudar os seus filhos a crescer. Em vez de se sentirem cada vez mais fortes, os filhos destas mães sentem-se cada dia mais sozinhos e abandonados. Mesmo quando vivem na mesma casa e partilham a mesma mesa. E até mesmo quando as mães lhes compram presentes, os vestem impecavelmente bem e dizem aos outros que adoram os seus filhos. Na verdade quem é muito amado, sente-se muito amado. Não precisa de anúncios, letreiros ou editais. Muitos filhos destas mães crescem à beira de um precipício, constantemente inclinados sobre o abismo, mas mesmo assim preferem manter as aparências e cultivar uma certa indiferença, sem dar nas vistas. A ambivalência de sentimentos relativamente a quem nos deu a vida (e segundo o Mito de Medeia, também nos pode tirá-la) faz com que se perpetuem relações difíceis, muitas vezes marcadas pela hostilidade. Na nossa sociedade amar uma mãe nunca é uma pergunta, é sempre um imperativo moral e, por isso, estes filhos não se atrevem a falar sobre a qualidade da sua relação. Muito poucos chegam a assumir a tremenda dificuldade com que vivem. Disfarçam. E sofrem.

Para agravar as penas interiores de quem atravessa uma vida sem a certeza moral do amor da sua mãe, sabemos que na infância e até à adolescência todas as crianças preferem ficar com uma má mãe, do que com mãe nenhuma. Resistem como podem a serem retiradas às famílias para serem institucionalizadas. Só quem já assistiu ou participou sucessivas vezes nestas ‘retiradas’ sabe a dificuldade que é separar um filho de uma mãe. Por mais maltratado ou negligenciado que seja. Por tudo isto e porque as más mães continuam a ser um tema tabu, importa perceber que é em alturas como o Natal, e outras datas de família, que estas verdades custam mais. Talvez ajude pensar que em certos casos melhor é mesmo impossível. Liberta os filhos do pesado fardo da culpabilidade (têm sempre sentimentos de culpa, mesmo sabendo que a culpa não é deles) e permite-lhes perceber que por mais dura que seja esta realidade, há filhos que têm o direito de não amar as suas mães.

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