Não estava preparado para encontrar Carrie Nation. Ela tinha mais de um metro e oitenta, e, como escreve Daniel Okrent em Last Call, “os bícepes de um estivador, a cara de um guarda prisional e a persistência de uma dor de dentes”. A mãe estava internada num asilo de loucos, convencida que era a raínha Vitória. E do que ela mais gostava, depois de ter experimentado um apelo divino, era de destruir sozinha saloons à machadada, gritando “Smash! Smash! Smash!”. Não é de estranhar que certos proprietários de bares colocassem na parede um aviso: All Nations Welcome But Carrie.

Isto passava-se entre 1900 e 1910 e vem muito bem contado no livro de Okrent que referi e no extenso documentário Prohibition, do prolífico Ken Burns e de Lyn Novick. Os anos que precedem o que entre nós é conhecido por Lei Seca, isto é, anteriores à ratificação da 18ª emenda à Constituição dos Estados Unidos em 1919, são anos férteis em personagens extraordinários e sobretudo em movimentos sociais extraordinários. Com efeito, o vasto número de pessoas que militavam a favor da proibição de qualquer consumo de álcool era movido por motivos de toda a espécie. Mulheres que estavam fartas de serem espancadas por maridos bêbados, outras que viam na proibição a chave para a perfeição conjugal e familiar, industriais (como Ford e Carnegie) que consideravam a Lei Seca algo que beneficiaria a produção das fábricas, sufragistas que lutavam pela emancipação da mulher, negros que achavam que o álcool era um intrumento de opressão dos negros, o Ku Klux Klan, protestantes que queriam combater a progressão do mal e do catolicismo, radicais de esquerda que viam no álcool um dos ópios do povo, e por aí adiante, na maior parte dos casos com sublime fanatismo temperante. Quer dizer: gente de toda a espécie unida por um objecto comum de detestação e uma ambição sem limite – erradicar até à última gotinha o álcool dos Estados Unidos.

Progressivamente, sobretudo a partir da entrada em força da Anti-Saloon League na batalha,  os únicos opositores de peso à tendência geral – os fabricantes, quase todos alemães, de cerveja, como Adolphus Busch, e os produtores de whiskey (que, de resto, lutavam entre si) – foram derrotados. Em 1919 a Lei Seca entrou em vigor, bem como o “Volstead Act” que determinava os meios de a pôr em prática. E começa aí um período que tem o indiscutível mérito de ter fornecido material para alguns dos grandes filmes americanos, o período dos mais célebres gangsters, de Al Capone a Dutch Schultz, que enriqueceram com a produção e o tráfico ilegal de álcool. O mérito não foi só esse, de resto. Não havendo saloons, as pessoas começaram a reunir-se para beber num número cada vez maior de speakeasies clandestinos que floresciam por todo o lado, especialmente em Nova Iorque. E “pessoas” incluia aqui também mulheres, que nunca se teriam visto antes em saloons. Um dos efeitos da Lei Seca foi, de facto, para muitas mulheres, uma libertação individual, permitindo-lhes beber com os homens e provocando uma espécie de revolução sexual. A maior cronista dessa libertação foi Lois Long, a jornalista da New Yorker.

A Grande Depressão tornou a perda de empregos resultante do fechamento das fábricas de cerveja cada vez mais intolerável. Figuras como o mayor de Nova Iorque Al Wilson começaram a manifestar-se contra a Lei Seca (Wilson perderia a eleição para a candidatura presidencial pelo Partido Democrata por isso – e por ser católico). Pauline Sabin, uma republicana em ruptura com o próprio partido, lançou uma enorme campanha pelo fim da proibição. E finalmente, depois de muitas hesitações, o recém-eleito presidente Franklin Delano Roosevelt encabeçou, com um apoio cada vez mais geral, o movimento que conduziria à 21ª Emenda (que anulava a 18ª), votada e ratificada em 1933. Chegava assim ao fim o período da vigência da Lei Seca. H. L. Mencken festejou a libertação no bar do Hotel Rennert em Baltimore, bebendo a primeira cerveja legal: preety good – not bad at all.

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Não me dei ao trabalho de fazer este resumo muito deficiente da ascensão e queda da Lei Seca inocentemente. Por acaso, sempre tive vontade de ler alguma coisa sobre o assunto – e nunca tinha lido. Mas a razão principal é obviamente outra. Descontando os elementos que fazem a singularidade irredutível de qualquer acontecimento histórico, há boas razões para ver na Proibição um paradigma de todos os momentos em que as sociedades democráticas sucumbem a um fanatismo delirante e em muitos casos letal. Está praticamente lá tudo. A mistura de motivos compreensíveis e de motivos inaceitáveis, a tendência a legislar sobre o ilegislável (a moral), a pretensão à iluminação divina, até a confluência de posições muito diversas numa aparente unanimidade social.

Como se sabe, por esse mundo fora e até em Portugal, fanatismos sortidos imperam, visando legislar sobre a moral individual com não menos ímpeto e reivindicação de divina iluminação que os adeptos da Proibição. Por cá, o Bloco de Esquerda encontra-se na vanguarda da justa luta. Basta ver e ler de vez em quando Mariana Mortágua, que certamente não partilha as características físicas de Carrie Nation, para nos darmos conta disso. Não estou de resto a vê-la a entrar aos gritos de “Esmaga! Esmaga! Esmaga!”, de machado em punho, em qualquer antro de perdição moral capitalista. Mas vejo-a perfeitamente a, com a persistência de uma dor de dentes, lutar por um mundo onde a moral individual seja legislada ao milímetro. Ela não é, de resto, o exemplo mais radicalmente ilustrativo da atitude em questão. Mas serve.

Moral da história? Devia haver nos lugares públicos umas tabuletas quaisquer onde se pudesse ler: “Todos os democratas são bem-vindos, e os outros também, desde que não se metam demais nas nossas vidas”.