O que é que leva alguém a ficar meio mês em frente à televisão, a ver gente a correr, saltar, nadar e outras coisas assim, numa espécie de ritual agonístico e pagão universalmente partilhado, prescindindo de actividades espirituais mais elevadas? Estou a falar dos Jogos Olímpicos, é claro. A decisão é discutível, certamente, mas há talvez boas razões, ou, pelo menos, razões aceitáveis, para o que pode parecer uma perda de tempo.

Comecemos pela primeira, que, sendo considerável, não é fundamental. A possibilidade de ver, aqui e ali, o Rio de Janeiro. Não há cidade alguma que conheça que tenha aquela espécie de beleza. Uma beleza que muda constantemente de aspecto a cada ponto de vista que adoptamos, a cada viagem no interior da cidade, como um caleidoscópio. Imagino que quem nunca tenha lá estado não perceba bem. Mas quem lá tiver passado algum tempo – e eu passei algum, a viver junto da lagoa Rodrigo de Freitas, a das provas de canoagem – percebe, sem dúvida. Durante mais de um ano, depois de voltado a Portugal, aparecia-me repetidas vezes, como numa alucinação, o Rio frente aos olhos, em imagens involuntárias. A beleza daquilo não se diz.

Bom, mas isto é, apesar de tudo, secundário. A possibilidade de contemplar que o desporto dá é algo mais importante. “Contemplar” quer aqui dizer: fixar apenas a atenção e não ter que ajuizar, decidir, deliberar sobre nada. Um benefício, parece-me, muito subestimado. São tantas as chatices que não nos caem na cabeça assim. Mas adiante. Quando era novo, a televisão era, no capítulo, um poço de oportunidades. Havia o Torneio das Cinco Nações (rugby). a Fórmula 1 e os saltos de Garmisch-Partenkirchen, entre outras coisas. Depois, o futebol, e sobretudo o meta-futebol, comeram tudo. Sobraram os Jogos Olímpicos e pouco mais. Temos de nos agarrar aos Jogos Olímpicos.

Claro que a contemplação é impura. O mundo exterior impõe-se e lá temos que ajuizar de vez em quando. Nestes Jogos Olímpicos, além da eterna questão do doping, tivemos direito às queixas dos franceses contra o ciclismo britânico, a brasileiros que vaiam atletas como se estivesem no futebol, a um francês vaiado que se comparou, com grande sentido das proporções, a Jesse Owens, ao anti-semitismo de um judoca egípcio que se recusou a cumprimentar o judoca israelita que o havia derrotado, a um responsável olímpico irlandês que aproveitava para vender mais caros os bilhetes que estavam sob a sua alçada, a um nadador americano a quem não ensinaram que mentir é feio e a dois treinadores mongóis de luta livre que se despiram em protesto contra uma decisão do júri. E não sei mais quê.

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Mas, em geral, houve terreno livre para a contemplação. E cada modalidade olímpica oferece a possibilidade de uma contemplação particular, nuns casos mais intensa (é a que dá mais prazer), noutros menos. Cada um terá as suas preferências, as suas insensibilidades e as suas detestações. Por mim, as preferências vão sempre para a natação e as corridas. Ciclismo, quase. Por uma razão simples. Compreendo melhor, e essa compreensão sente-se no corpo, quase muscularmente, enquanto se vêem as provas. Também gosto, é verdade, dos saltos de comprimento e de altura, que ultrapassam a minha capacidade de imaginação física. Gostava, no entanto, de ser capaz. Depois, as insensibilidades. Saltos de trampolim, etcetera. E as detestações. Só uma verdadeiramente a sério: a marcha. Eu sei que o argumento da “não-naturalidade” é, em parte por razões aceitáveis, mal-visto hoje em dia. Mas, francamente, a marcha exagera. Cada um gosta do que gosta, é verdade, mas quem quiser andar e correr ao mesmo tempo, que o faça em casa, sem ninguém por perto. Não se pode trocar a marcha pelo snooker, que é um prazer ver?

Uma das coisas óptimas de vermos sem ter de decidir nada são as coisas da contingência. As expectativas são por vezes satisfeitas, outras defraudadas, como se diz. Os grandes Usain Bolt, Phelps e Mo Farah ganharam o que tinham a ganhar. Mas a extraordinária Simone Biles, no meio das grandes vitórias, falhou terrivelmente a trave. Blanka Vlasic, que merece uma medalha de ouro em cada competição em que entra, desde os Jogos Olímpicos de 2000 em Sidney, ganhou, quando já ninguém esperava, o bronze no salto em altura. E houve quedas, erros de transmissão do testemunho e outras coisas assim. Isso, o inesperado da contingência, faz parte do prazer dos Jogos, mesmo quando não convém às nossas preferências. Por falar em preferências. Os Estados Unidos, e muito bem, ganharam de longe em medalhas. Mas quem gosta da Inglaterra (e de Gales e da Escócia) só pode ter ficado satisfeito por a Grã-Bretanha ter ficado em segundo lugar. Um momento Chariots of Fire, por assim dizer.

O live blog do Guardian permitia seguir de perto, em detalhe, a evolução de todas as provas, e, pessoalmente, usei e abusei dele. O que leva à cobertura portuguesa dos Jogos. Saltitei, por obrigação entre a RTP 1 e a RTP 2. Não quero exagerar em matéria de espírito crítico e dizer que certos comentadores pareciam ser incapazes de falar e ver ao mesmo tempo e que, falando muito, davam a impressão de não ver coisas que saltavam aos olhos do comum dos mortais. Nem, nos saltos para a piscina, me quero lamentar pelo facto de os comentários se terem praticamente concentrado na menção do “grande splash”, do “pequeno splash”, do “splachezinho” e por aí adiante. Mas a selecção das transmissões directas e das retransmissões, talvez por desatenção minha, pareceu-me discutível. Não tenho nada contra a natação sincronizada, que até me deu vontade de rever um filme ou outro com a Esther Williams, mas houve coisas que tinha vontade de ver e que, tanto quanto reparei, não apareceram nunca (ciclismo em pista, por exemplo). Não me queixo inteiramente. Pelo menos, fiquei a saber que a RTP 2 se define a si mesma como “culta e adulta” e imune ao cinema de Hollywood. Fiquei a perguntar-me se ser culto e adulto é compatível com a auto-proclamação de se ser culto e adulto. Talvez alguém na RTP 2 possa dar a esta interrogação uma resposta culta e adulta.

Mas voltemos à questão do “medalheiro olímpico” e, a reboque, à perversa questão do vil metal. Porque é que a Grã-Bretanha teve tão bons resultados? Há casos em que a unanimidade aponta mesmo para a verdade. Desde 1997 que a Lotaria Nacional financia em 75%, creio, o desporto olímpico britânico. Quantidades enormes de dinheiro. Em Atlanta (1996), a Grã-Bretanha obteve apenas uma medalha de ouro (quinze medalhas no total). A partir daí, o progresso foi constante. No Rio, o total das medalhas foi superior, caso raro, aos dos Jogos no próprio território (Londres, 2012): vinte e sete medalhas de ouro (sessenta e sete medalhas no total). Isto significa que, nestas matérias, como em quase todas, o carácter e a atitude das pessoas não basta. É preciso dinheiro e condições, além de tradição, organização e competência dos organismos que as enquadram, para elas se desenvolverem convenientemente. Não comparo com Portugal, uma tristeza, por mais do que uma razão. Falta aqui a tradição (ou quase falta) e falta (falta todo) o dinheiro, entre, certamente, várias outras coisas.

Agora, uma pequena vergonha. Para aprender alguma coisa sobre os primitivos Jogos Olímpicos, pus-me a ler, enquanto decorriam os Jogos, o mais célebre de todos os comentadores desportivos: Píndaro. Longe de mim pretender que as diferenças entre os Jogos Olímpicos da antiguidade clássica e os criados por Pierre de Coubertin, sujeitos a várias modificações posteriores, são despiciendas. Claro que não são. Mas ler e reler Píndaro (de que praticamente, tirando uma passagem ou outra, ou coisas sobre ele escritas, nada conhecia antes) abriu-me um bocadinho os olhos. Mesmo sem conseguir ir mais além do que a superfície da superfície, e esquecendo, na medida do possível, o milagre da criação do pensamento que se encontra na Grécia antiga, e que Píndaro magnificamente ilustra, há várias coisas que nos dizem ainda imediatamente respeito.

Píndaro cantou os vencedores de váris jogos: os Olímpicos (em Olímpia), os Píticos (em Delfos), os Nemeus (em Nemeia) e os Ístmicos (em Corinto). Os maiores atletas circulavam entre os vários Jogos, como hoje circulam entre Olimpíadas, Campeonatos do Mundo, os grandes meetings, etc. Os que sobraram para nós foram, bem entendido, os Olímpicos. E ainda se pode ver hoje a pista de corridas do estádio de Olímpia, um sítio só identificado em 1766 por um inglês, Richard Chandler. Ir a Olímpia, e ver, entre outras coisas, o estádio, provoca, como tantos lugares da Grécia e de Itália, a mesma exclamação de Freud junto à Acrópole: “Então isto existiu mesmo!”. Como se uma expectativa que culturalmente permanecia em nós teoricamente satisfeita precisasse desse acréscimo da intuição sensível da presença para se tornar perfeitamente realizada. Mas o que Píndaro nos conta dos Jogos, no cruzamente do mitológico, do político e do desportivo, é magnífico.

De acordo com uma velha tradição da Grécia antiga, a palavra do poeta compete com os objectos a que se dedica, neste caso com os feitos do atleta. Encontra-se isso em muitos domínios (a descrição do escudo de Aquiles na Ilíada, ou de uma pintura, rivaliza com o escudo ou a pintura). Em Píndaro, essa rivalidade é muito clara. “As palavras vivem mais do que os feitos, palavras que a língua, com o favor das Graças, extrai dos abismos da mente.”

Os Jogos Olímpicos encontram-se colocados sob a égide da figura tutelar de Hércules, o vitorioso por excelência. A vitória é sem dúvida essencial. Píndaro explica que a vitória nos Jogos afasta dos vencedores todos os negros pensamentos. O homem que conhece o sucesso esquece o Hades. A vitória é a felicidade. E isso transparece plenamente nos nossos Jogos: como se, no instante de cortar em primeiro lugar a meta, os rostos dos atletas exibissem a felicidade em estado puro, não contaminada por qualquer outro sentimento. Mas essa felicidade é, por definição, efémera, lembra Píndaro. O excesso contém em si um risco, do mesmo modo que o contém o exagero no elogio poético dos vencedores. A boa medida deve ser, por isso, preservada na felicidade. Não se deve desejar o impossível. Criaturas de um dia, somos “o sonho de uma sombra” e a morte é certa mesmo para os vencedores.

O que fica mais de Píndaro, nesta matéria, e que corresponde perfeitamente à experiência que temos ao ver os Jogos, é ideia da perfeita felicidade no rosto dos vencedores: todos os negros pensamentos são afastados, é como se o Hades, a morte, não existisse. E, ao mesmo tempo, a fragilidade desse momento. Tudo, em seguida, está condenado desmoronar-se. A felicidade traz consigo coisas boas e coisas más. Mas quem ousará dizer que não vale a pena? E que não vale a pena assistir a esse espectáculo? Precisamos a sério disso.