Helena Matos não se cansa de o repetir neste jornal, e faz muito bem: é muito surpreendente a permanente correria de causas que vemos constantemente à nossa volta. Quando acaba uma corrida, logo começa outra, sem intervalo algum, com novo prémio. Como se deixar de correr, abandonar a corrida, fosse morrer. E reina sempre um enorme entusiasmo justiceiro, próprio de quem, como dizia o outro, tem o sofá virado no sentido da história.

Não é, note-se, que as causas sejam forçosamente más. Várias delas, pelo menos para quem conseguir seguir a correria, de tempos a tempos, são óptimas. O problema, o que surpreende e incomoda, é exactamente o entusiasmo, que frequentemente tende para o agressivo. E a suspeita de puerilidade que o espectáculo dos grandes entusiasmos espontaneamente sugere. Uma suspeita que está longe de ser injustificada, porque às tantas as causas parecem funcionar como os “memes” de Richard Dawkins, no tempo em que Dawkins escrevia bons livros: ideias, comportamentos, que se propagam a grande velocidade (hoje em dia dir-se-ia: são virais). O que significa que a dose de reflexão requerida para a apropriação das causas não é nunca muito grande. Nem convém, até, que seja muito grande, não vá, na pausa da correria, insinuar-se uma dúvida ou outra que nos faça sentar à beira da estrada e contemplar as estrelas.

Por detrás da variedade das causas há, no entanto, certas invariâncias. E elas dizem em primeiro lugar respeito aos objectos sobre os quais os memes das causas incidem. A replicação das opiniões escolhe objectos gerais que, por uma razão ou outra, parecem mais acolhedores do que outros para a repetição e a transmissão quase instantânea dos memes. Segue-se uma lista muito incompleta desses objectos, ou melhor, das patologias que o causismo inspira na nossa relação a certos objectos. Lembro de novo que as causas em si não têm de ser más. O mal está no tom de entusiasmo que as acompanha e que é a razão imediata da sua instantânea propagação em grupos que não precisam, de resto, ser excessivamente extensos, desde que sejam suficientemente vocais.

Patologias sanitárias. A saúde, é claro, é uma coisa excelente, e há coisas que lhe fazem bem e outras que lhe fazem mal. E é bom saber que substâncias ou práticas entram dentro de uma categoria ou outra. O elemento patológico instaura-se, no entanto, a partir do momento em que o comportamento colectivo passa a ser integralmente dominado pela consideração do que “faz bem” e do que “faz mal”. Só Deus sabe o grau de entusiasmo que o saber do bem e do mal provoca nestes casos. E omito, por enquanto, a satisfação que esse particular saber provoca nos seus detentores e a mais ou menos inconsciente gratificação pessoal que os puros obtêm em se distinguirem agressivamente dos impuros, supostamente ignorantes do bem e do mal. Limito-me ao plano do simples comportamento.

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Como fumador (eu sei que faz mal) já me aconteceu várias vezes, ao comprar cigarros, ter direito a uma longa arenga de um cliente próximo destinada a lembrar-me dos malefícios do tabaco. No princípio, irritava-me. Mas, com o tempo, desenvolvi um sólido repertório de respostas aos anjos do bem. E juro que algumas vezes não encontrei razão alguma para me envergonhar do meu engenho. Continua a admirar-me, no entanto, o fundo mental que permite tanta liberdade na intromissão na vida alheia. Mas se é verdade que fumar indiscutivelmente faz mal, há outros objectos de investimento passional no que “faz bem” que são, no mínimo, de racionalidade duvidosa. Até porque o que “faz bem” num dia, no dia seguinte, informam-nos os jornais, afinal “faz mal”, e no dia a seguir “faz bem” de novo, e assim por diante. Estas variações não incomodam aqueles que são afectados de patologia sanitária. O que é preciso é correr, e correr sempre, mesmo tendo de mudar de direcção as vezes que for preciso.

Patologias ecológicas. Também aqui as causas são muito louváveis. A dimensão patológica revela-se apenas quando se dá o passo para o entusiasmo, quer dizer, para um estádio em que a discussão crítica deixa, pura e simplesmente, de fazer sentido. Os memes propagam-se à velocidade da luz e tudo serve para confirmar a tese, faça chuva ou faça sol. Muitas das conversas acerca do chamado “aquecimento global” são um exemplo de eleição disso. Outro exemplo diz respeito ao tratamento dos animais, matéria à qual, por acaso, gostando de animais, sou sensível. Aqui a patologia manifesta-se na escalada no plano da argumentação. Com altos patrocínios filosóficos, fala-se, por exemplo, de “direitos de animais”, um conceito que, sob quase todos os pontos de vista, não faz sentido. Mas os memes são velozes, e a inquirição racional, ou o simples bom-senso, rapidamente perdem toda e qualquer importância. Corre-se tão depressa que nem se tem tempo para fazer uma festa no focinho de um cão, quanto mais admirar o belo sorriso feliz de um crocodilo depois de mordiscar as pernas de um antílope.

Patologias culturais. São também muito vulgares. Mais uma vez, os seus objectos podem apresentar uma dignidade apreciável. O problema é quando eles não parecem possuir suficiente dinâmica própria e a sua defesa, para sobreviver, tem de encenar uma oposição a forças alheias naturalmente maléficas. Voltamos à luta do bem contra o mal. O mal costuma ser representado nestes casos pela figura dos “mercados”, algo que o nosso novo ministro da Cultura exprimiu apropriadamente em versos que me pareceram muito maus. Os “mercados” são o inimigo proverbial da cultura. Impõe-se “marchar, marchar” contra os danados, mesmo que a marcha seja sempre modestamente feita em direcção a um ministério qualquer, pedindo “mais Estado” em nome dos imprescriptíveis direitos do espírito. Se calhar, os nossos egrégios avós já haviam meditado essa possibilidade, mas ela releva, francamente, da patologia cultural.

Que adopta, sucessivamente, várias figuras. Há uns anos atrás, por exemplo, o cantor Pedro Abrunhosa, com óculos escuros e tudo, prendeu-se com um cadeado às portas do Coliseu do Porto para impedir que a IURD, creio, o pudesse comprar. Hoje em dia, há a nobre cruzada para salvar as “lojas históricas” de Lisboa, à custa dos direitos dos senhorios. E quando se ouve falar de “companhias de bandeira” e coisas assim o registo mental é mais ou menos o mesmo. Note-se que muitas destas causas são perfeitamente legítimas. Por mim, estou muito longe de me opor a subsídios às artes ou à preservação dos restos de uma passada vida comum. Mas quando tais causas são defendidas com indisfarçável desprezo pelas razões dos outros, que existem e têm de ser tomadas em conta, algo vai muito mal. Entramos no domínio do patológico. E também aqui é o entusiasmo que permite a propagação dos memes das causas.

Às vezes apanho-me a perguntar-me o que é comum, para além do entusiasmo e da relegação da racionalidade para um lugar muito longínquo, a estas patologias sanitárias, ecológicas e culturais, entre outras. O que gera esse entusiasmo? Porque, apesar de tudo, pessoas menos excitáveis podem perfeitamente apreciar a saúde, e precisarem dela, preocuparem-se com o planeta e gostarem dos animais, amarem a música e a pintura e desejarem a preservação de lugares que simbolizam formas de vida comum do passado – tudo isso sem caírem no entusiasmo e na irracionalidade.

Há uma hipótese que me parece verosímil. A origem, a mola, o princípio do entusiasmo, o que gera o feroz desejo de unanimidade, o desprezo pela posição contrária e um secreto, ou não tão secreto assim, desejo de censura reside na oportunidade de apresentar justeza moral e exprimir a superioridade da sua sensibilidade por relação à sensibilidade dos outros. É a condição principal da receptividade aos memes das causas. O que remete por sua vez para uma espécie de rousseaunismo pós-moderno (sem ofensa para o grande pensador que foi Rousseau). Só a sensibilidade extremada pode exprimir a verdade. Trata-se, portanto, para o causista, de a extremar e de correr muito depressa, saltando alegremente (o “pós-modernismo” está aí) de causa em causa, apresentando ao mundo a plenitude do seu ser. No fundo, uma versão nobre dos reality shows. Por dentro de cada entusiasta patológico há, bem vistas as coisas, um personagem da “Casa dos Segredos”.