Devem ter reparado certamente: temos em Portugal um novo centro de peregrinação religiosa internacional. É a Web Summit. Desta vez, é para Lisboa que os fiéis convergem, aos milhares. De dia, com as suas pulseiras mágicas, enchem os templos improvisados onde os altos dignitários da hierarquia tecnológica internacional aparecem, em carne ou em imagem, a revelar mensagens ou a dirigir meditações; à noite, há procissões guiadas para as capelinhas da cerveja. A imprensa da paróquia cobre as cerimónias, explica as liturgias, descodifica as encíclicas, dá a nota de “cor local”, e maravilha-se com a capacidade dos crentes para esgotar hotéis e entupir o Metro.

Os sacerdotes do culto e os seus convidados célebres pregam sobre os mais variados assuntos, dos algoritmos às técnicas sexuais, da inteligência artificial aos Jogos Olímpicos. Nada escapa à sua sabedoria. Donald Trump, como não podia deixar de ser, é o tema obrigatório para a piada inicial com que os manuais de estilo mandam agarrar a audiência (politicamente correcta, como é óbvio). Nos palcos, sentam-se ou passeiam aqueles que já visitaram o futuro, os iluminados, as “pessoas incríveis”, as “mentes brilhantes”, os que sabem que vem aí uma “revolução”, um “mundo novo” e todos os outros clichés que há mais de duzentos anos sustentam a idolatria da ciência e da tecnologia. Levam-se, como seria de esperar, brutalmente a sério, tão a sério que até se esforçam por parecer informais, com as suas t-shirts e sapatos desportivos sem meias. Está mesmo aqui o futuro? Sabe-se lá. Em 1970, também toda a gente pensava que estava num sítio, e afinal estava noutro: toda a gente falava da IBM, ninguém se lembrou de ir espreitar a garagem de Steve Jobs.

Não me entendam mal: recorro à metáfora religiosa, não para achincalhar, mas como homenagem. Porque a grande aspiração da ciência e da tecnologia modernas foi constituírem-se como religião, ou melhor, como a única e verdadeira religião. No passado, uma humanidade pobre e ignorante teria recorrido a fantasias para consolar a sua impotência. Steve Jobs e os seus émulos e sucessores oferecem-lhe agora os verdadeiros milagres. Finalmente, vamos mesmo dominar o mundo, descobrir quem somos, e prever o nosso destino, a começar pela questão básica: haverá empregos para todos e, já agora, suficientemente bem pagos para comprarmos o próximo iPhone?

As autoridades indígenas deliram com o festival. Tal como um Estado laico pode tolerar e aproveitar um centro de peregrinação religiosa, também os senhores do actual Estado social-comunista pensam poder tolerar e aproveitar um ninho de “empreendedorismo”, segundo a antiga lógica chinesa de “um país, dois sistemas”. Já temos, aliás, um regime fiscal com essa esquizofrenia, em que a Autoridade Tributária só existe para os cidadãos, mas não para os residentes estrangeiros, fiscalmente livres para gozarem o sol. Lenine dizia que o comunismo era o poder dos sovietes mais a electricidade. O costismo parece ser o poder da CGTP mais o Web Summit.

Talvez o leitor, neste momento, esteja a dizer: eis um tecnófobo, um inimigo do progresso da nação. Juro-lhe que não, caro leitor. De maneira nenhuma. Já quase não consigo imaginar como era possível a vida antes do computador, do telemóvel ou da internet. Eis-me aqui pronto para aplaudir todas as inovações, aderir a todas as virtualidades. Acho muito bem que montem mais uma feira para gente com ideias encontrar gente com dinheiro. O que peço é que me poupem ao espectáculo da importância que a si próprios se atribuem estes profetas do écran e milagreiros da rede. O que peço é que não me obriguem a acreditar que é possível replicar Silicon Valley numa qualquer Albânia, desde que haja sol e a cerveja seja barata nessa Albânia.

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