Começo por dizer que sou parte interessada nesta questão. A empresa onde entrego a minha vida profissional contrata pessoas com formação científica – doutoramentos –, ou em vias disso, como se contrata qualquer trabalhador e por isso, para mim bom é as universidades não contratarem ninguém. Isto para quem ainda não começou a ler pode parecer absurdo porque vai pensar, com alguma razão, porque carga de água as pessoas que têm doutoramento haveriam de ser inferiores aos demais trabalhadores portugueses, mas lá chegaremos.

O senhor Reitor da Universidade Coimbra, no início do mês de Julho, afirmou que a alteração do regime laboral que liga os investigadores científicos temporários às universidades era “o maior ataque à escola pública em toda a democracia portuguesa”. Pois deixem-me aqui explicar porque é que o senhor reitor está profundamente errado.

Para se perceber o que está em causa, um decreto-lei, o 57/2016 agora promulgado pelo Presidente da República, estabelece o novo regime de contratação de trabalhadores científicos, leia-se doutorados contratados a prazo. O ataque resume-se ao seguinte: se a instituição contratante for do estado, então os trabalhadores passam a ser contratados a prazo a três anos, renováveis até seis, nos termos da Lei Geral do Trabalho para contratos com o estado (que não tem nada de “Geral”); se a instituição for privada, então são trabalhadores como outros quaisquer, a não ser que a instituição privada seja do sistema científico nacional, o que significa na prática que é tão privada como as do estado, porque vive de subsídios.

Aposto que o leitor ainda está a ver se percebe onde está o problema. O que acontece é que, até agora, as universidades contratavam os doutorados com aquilo que se chama de “bolsa”. Um montante isento de impostos e de segurança social, a não ser que o bolseiro voluntariamente desconte do seu salário, com o qual as universidades e laboratórios do estado viviam confortavelmente. Os funcionários públicos que lá trabalham, como o senhor Reitor, têm o seu rendimento garantido e a possibilidade de alavancar o seu trabalho com recurso a esta espécie de “trabalhador das vindimas”, cujos direitos e proteção social se resumem a coisa nenhuma. O lado positivo em tudo isto é que não se aplicam vergastadas, ou qualquer tipo de castigo físico, a estes bolseiros. O decreto-lei em vez de vir autorizar a aplicação desses castigos físicos, vem equivaler os bolseiros a trabalhadores com alguma proteção durante um contrato a prazo de seis anos.

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Talvez a coisa ainda esteja complicada e o leitor ainda esteja a tentar perceber porque é que um contrato a prazo de seis anos se qualifica como “proteção laboral”. Tem razão, nenhuma empresa pode contratar quem quer que seja, a prazo, por seis anos. Mas estes 6 anos têm uma razão de ser no protocolo do mundo académico, principalmente nas matérias com pouca importância económica (que na minha opinião e experiência, corresponde a pouca valia cientifica, mas deixemos isso agora). O protocolo manda que, depois do doutoramento, as pessoas façam aquilo a que se chama de “post doc”, uma posição precária por períodos de 3 anos, até que surja a chamada “posição permanente”, ou, em termos comuns, um emprego. Quando se chega ao fim do segundo contrato de “post doc” significa que a carreira não estará muito bem, até porque há uma vaga de doutorados que vem atrás e que também vai querer chegar à posição permanente, e é tempo de se dedicar a outra coisa. Aquilo que o decreto-lei traz, o tal ataque à escola pública, é reunir as condições para que estas pessoas possam ter a mesma proteção social de todos os outros, incluindo o senhor Reitor.

Agora que todos percebemos que uma coisa são falsos recibos verdes, outra coisa completamente diferente é ajudar a escola pública na sua nobre missão de procurar o conhecimento com recurso a práticas negreiras, deixem-me dar a perspetiva desde lado da economia, aquele lado que não usa aldrabices para contratar trabalhadores e que vive daquilo que os seus clientes querem pagar.

Este lado da economia contrata doutorados como trabalhadores normais, paga 23,75% à segurança social só porque os contratou e 23% do que os clientes pagam pelo trabalho deles em impostos de transação. O contribuinte que paga por um doutorado com uma posição permanente no estado 70 mil euros por ano, este leva por mês 5 mil euros de salário bruto. Mas se um cliente de uma empresa privada pagar 70 mil euros por ano pelo trabalho de um doutorado, este leva por mês 3 mil e 300 euros brutos. Portanto, para uma empresa privada contratar um doutorado com uma posição permanente a ganhar a mesma coisa, o custo para a empresa é de quase 107 mil euros, sem contar nem com mais custo nenhum, nem com lucro para comprar melões. O que significa que é impossível para uma empresa contratar um investigador que esteja no quadro do estado.

E os que não estão no quadro? A diferença era ainda maior, porque ninguém no estado pagava imposto nenhum pelos bolseiros, nem segurança social, nem impostos de rendimento. A estes pobres pupilos de luxo, é oferecido um valor sem que o estado português assuma qualquer custo adicional ou qualquer garantia social ou laboral a troca do engodo de poderem, um dia, ter a felicidade do desaparecimento de alguém do quadro e receberem o prémio tão desejado da posição permanente. Os que começam a sair para a economia produtiva, e permitam-me ser enfático neste “produtiva”, saem depois da tragédia de terem passado dois ou mais “post docs” na esperança vã de terem um emprego como as pessoas normais, ou seja, quando já levam quase 40 anos de vida. Não que me queixe, porque este tipo de pessoa, se tiver um doutoramento numa área quantitativa, encontra entre os meus colegas o ambiente que permite agarrar uma carreira. Mas o engodo em que caiu inicialmente é criminoso, sob qualquer perspetiva que se olhe.

É comum ouvir o lamento de que as empresas portuguesas não investem em investigação. Não sendo inteiramente verdade, é bem verdade que o número de doutorados que trabalha em empresas é ridículo. As causas estão acima. Pelo menos, a partir de agora, o custo de contratar um doutorado em condições repugnantes no estado está a ser aproximado ao custo de uma empresa privada contratar um para uma posição digna. Continua longe de ser igual, mas as coisas começam a ser aproximadas.

Gostava de terminar com uma referência ao “maior ataque à escola pública na democracia portuguesa”. Eu desafiava as universidades portuguesas a acabarem com as posições “post doc” durante seis anos. Mal não vinha ao mundo para os jovens investigadores, porque esses não perdiam emprego nenhum. E permitia-nos medir a produção científica das universidades só com investigadores permanentes. É que metade do ordenado destas pessoas é para pagar trabalho científico, a outra metade é para ensino. Com este chamar às trincheiras, só porque os bolseiros deixam de trabalhar à jorna, ao ponto de ser visto como um “ataque” desta dimensão, dá para termos uma ideia de qual seria o resultado apresentado pela escola pública apenas com os trabalhadores do quadro. As declarações do senhor Reitor são, aliás, de uma clareza cristalina: sem poderem fugir às suas obrigações fiscais para com a sociedade, as universidades não conseguem competir com os privados e veem a simples aplicação de umas ridículas garantias laborais aos bolseiros como um favorecimento dos privados. Por isso, neste ataque à escola pública, espero que a democracia portuguesa ganhe!

PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer