Um autor observou que sempre que ouvia a música de Wagner tinha vontade de invadir a Polónia. A televisão portuguesa e o resto adoptaram durante o último mês o tom da Rádio Berlim por volta de 1939, embora ao som da música empolgante do maestro António Melo. A única coisa decente a fazer, sugeriu-se, seria partir à reconquista do mundo, começando pelos países que falam português e acabando nos que não; Angola, foi comunicado, é nossa.

Uma multidão de homens quase sem voz especializou-se em promessas; sempre que acontecia estar por perto uma câmara ou um microfone garantiram aos quatro e aos cinco a morte de alguém ou a vitória, sombriamente. Os principais eleitos aproveitaram a ocasião para defender que a legitimidade política consiste no defluxo espontâneo de sentimentos poderosos. Usaram para o efeito cachecóis em pleno Verão; deram saltos; e explicaram através de processos intelectualmente corruptos que se tudo fosse sempre como é agora, nada do que é agora seria.

O horror generalizado que se seguiu, embora de curta duração, serve no entanto para lembrar aos historicamente inclinados que o mundo moderno não descende das conversas de café em companhias de resseguros londrinas; ou dos salões da eleitora da Renânia-Palatinado; ou de um esforço de cavalheiros. Remonta antes aos hábitos musculados da Bizâncio do século VII, onde a opinião nasceu das claques desportivas: o couraçado Potemkin e a Gloriosa Revolução são os herdeiros do hipódromo de Constantinopla, de onde partiam os autocarros carregados de corpos para as voltas triunfais, muito aplaudidos. Os que prometem vitórias e aplaudem serão hoje tecnicamente outros; mas têm um modo não-técnico de ser sempre os mesmos.

A situação leva a pedir uma palavra de admiração para os traidores. São traidores todos os que em momentos de emoção colectiva repararam que a frase ‘Hoje temos mais razões para acreditar em Portugal’ não pode ser verdadeira nem falsa; os que mostraram relutância em andar pelas cidades de tronco nu; e mesmo aqueles que exprimiram apreço genérico pela ideia de França, mãe das artes, das armas e das leis.

Os traidores maiores de todos, e por isso os mais admiráveis, são todavia os que, cercados não obstante por lenços de minhota heráldicos e teorias sobre a nação eleita, persistem em considerar um sistema político sem autocarros nem triunfos, para o qual a taxa de abstenção é como o colesterol bom; e que desprezam um sistema político em que as escolhas principais são patrocinadas por companhias de cerveja, recomendadas por cientistas sociais, e sufragadas por adeptos. São aqueles que consideram que a maior conquista política da espécie foi justamente um modo de vida sem adeptos: em que não há vigilância policial dos eleitores sobre os eleitos; em que ninguém fica sem cabeça, e em que ninguém fica sem voz.

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