Para MGSC

Não vale a pena. Quem nunca entrou numa metalúrgica não conhece o verdadeiro cheiro a metal em formação. Aí o calor é uma presença mais ou menos intensa que se estende entre as catedrais da submissão que são as máquinas, ligando os fornos às empilhadoras, e estas às rebarbadoras e aos camiões TIR que aguardam no exterior, prontos a encher o bucho. Não é de admirar que as mãos dos operários guardem um pequeno calor de que as mulheres aprendem a gostar, principalmente no Inverno, como lareira muito pessoal.

Quem nunca entrou também não imagina o ruído. Assemelha-se a uma entoação que desaparece na rotina, mas perdura como mensagem subliminar que nos leva a alguma coisa. Só não sabemos que coisa é essa. O capacete dos operários devia defendê-los disto, mais do que de qualquer objecto que caia.

As bocas que largam calor, dragões industriais, exigem mais comida, mais metal, mais atenção. Morreriam se os minúsculos deixassem de as operar. Porra para elas, que ainda assim se mostram indiferentes, e tanto lhes faz que seja este ou aquele homem quem as assiste. Desde que vivam, tudo está bem.

Por isso, os operários socorrem-se uns aos outros. O seu trabalho é sobreviver, como os machos de determinadas aranhas durante a cópula. Não interessa como – desde que sobrevivam. Um deles, por exemplo (isto aconteceu tal e qual, excepto a parte de ficção), acordou certo dia espantado que o pulmão direito chefiasse uma enorme revolta no corpo. Liderava os rins e os intestinos, e falava com ele quando precisava de ir à casa de banho, sentenciando «Agora é que te lixaste». E assim o operário desistiu durante uns tempos de pensar no próprio corpo, deixando o raciocínio aberto ao espírito.

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Também aí encontrou torvelinhos por onde rebuscar. Imaginou fios que o ligavam a um fim desconhecido, a mão desconhecida, prontos a puxar por si. Havia que ficar imóvel, coelho na lura, até que os fios o libertassem. E sim, o operário ficava imóvel à espera, lembrando-se de respirar lentamente, porque não queria perturbar o pulmão direito, ainda com tendência subversiva.

Quem o visse parado em pleno trabalho, logo ali, numa linha de moldação Osborn, julgaria tratar-se de alguém de todo inteligente, ou em alternativa um perfeito idiota. Urgia assistir a máquina. Cedo esta chamaria por ele, exigiria a sua atenção. Livre do torpor, ajustava os moldes com enorme empenho. Porém, os fios sentiam o movimento e a mão desconhecida puxava-os devagarinho, com maldade, para não ser notada de imediato. Quando o operário reparava, embora não surpreendido, dava por si enredado na habitual ansiedade. E grato por o pulmão direito não se ter pronunciado.

Apesar de tudo, quando chegava a casa, com as tais mãos quentes da fábrica, encontrava refúgio na mulher. Ela sabia que ele não estava bem, mas atribuía isso a um QI demasiado baixo, por força da repetição diária dos mesmos gestos. Só o Chaplin fez comédia destes tempos modernos.

O operário sabia que em breve a Osborn estenderia a sua influência para lá da linha de moldação. O estado de ansiedade cavalgaria na noite, faria dele impotente e tudo o mais. Faria dele uma função. Curiosamente, atribuía o não estar bem a um QI demasiado alto, por força da repetição diária dos mesmos gestos. Teria de se dominar e dizer, a cada botão premido, como Tolstói, «Boa vai ela a cavalgada».

No entanto, anos nisto demonstraram que a cavalgada não ia boa. Agora a Osborn era tudo. Gostaria de lhe chegar a roupa ao pêlo com suavidade, entre a agressividade e a submissão. Dizer-lhe, continuando a servi-la, «Não percebes que sem mim não funcionas?». Talvez a Osborn sorrisse, e tratá-la por «tu» já mostrava revolta.

Sem mais, voltou-se para Deus. Queria que a paz dos convertidos apaziguasse a ansiedade de manejar um monstro tão potente. Disse à mulher e aos amigos que se convertera, e estes, em vez de o apoiarem, temeram que se tornasse um beato chato que ninguém conseguia aturar. Temiam a sacristia pós-laboral, porque de resto ele não incomodava. «Mas se vais à missa todos os dias, como é que trabalhas?», perguntou-lhe a mulher. Ele ria-se. A fé expressava-se muito bem no que era grande e pequeno, na missa, na rua, tanto faz. E, com esta certeza, não costumava falar do seu novo Deus.

Quando tudo parecia resolvido, ele de novo criança que esmera os gestos de um rito, quando por fim o trabalho, a fé e a vida deixaram de ser problema, o director de recursos humanos decidiu intrometer-se. Telefonou para a mulher sem ele saber. Queria falar-lhe com urgência. Podiam reunir-se na fábrica?

«Repare, falo com a senhora porque acho que já fizemos o bastante. Até agora a conversão do seu marido não era problema para nós, embora achássemos que precisava de ajuda.» A mulher não percebia a que se referia o Dr., até porque se tratavam de questões particulares. «A conversão do meu marido? Não entendo.»

Puseram capacetes e encaminharam-se para a fundição. A porta que a separava dos escritórios era de vidro triplo. Nada a preparou para o barulho e o calor lá dentro. Quem nunca entrou não sabe. «Eu levo-a ao seu marido», berrou o director.

Os operários, manchas humanas com capacetes amarelos, vergavam os  ombros perto das catedrais. Alguns conservaram os olhos azuis com que nasceram, mas pouco mais. O amarelo escuro dos fornos engolia-os.

A Osborn ficava no extremo oposto. Lembrava uma mãe a parir filhos sem dor. Deitada sobre o dorso, estendia a prole numa cama rolante. Dava à luz os moldes minuto a minuto. À sua frente, o operário baixava-se devagar. Ia premir um botão, parecia, mas nesse instante cumpriu o gesto: ajoelhou-se, benzeu-se e venerou a linha de moldação. Quando viu a mulher, tirou o capacete (plena confiança na deidade Osborn) e sorriu. Talvez chorasse, talvez suasse, mas tinha fé no deus mecânico.