É comum dizer-se que “o aumento da abstenção reflete o distanciamento crescente dos cidadãos em relação à política”. O diagnóstico é consensual: por exemplo, nas eleições legislativas dos anos 70, a taxa de abstenção era inferior a 20%; subiu para 20-35% nos anos 80-90; e alcançou o valor recorde de 44% em 2015. Dada a tendência, retira-se a conclusão fácil: “as pessoas não votam porque não dão importância à política”. Discordo profundamente.

Julgo que a sociedade está a cada vez mais interessada por política (no sentido lato, ou seja, a preocupação dos cidadãos com os assuntos públicos). São inúmeras as intervenções cívicas a que assistimos: por um lado, movimentos organizados e contínuos (exemplos: FNAC Shaper Talks ou a blogosfera); por outro, acontecimentos espontâneos e pontuais (exemplos: petições online ou manifestações dinamizadas através do Facebook). Há, no entanto, um traço comum: a ação política já não passa só pelos agentes tradicionais. O sistema, potenciado por uma nova realidade digital, deixou de ser centralizado: os contributos são hoje atomizados e partilháveis por todos.

No entanto, este desejo de intervenção política não se traduz em participação eleitoral. “Cidadãos políticos” não se convertem em “cidadãos eleitores”, porque o sistema político não se adaptou a esta transformação da realidade. E aqui julgo que há dois vetores que merecem atenção: o quadro institucional e os partidos políticos. Quanto ao primeiro, há várias ideias que podem ser implementadas e que abordarei numa próxima ocasião (ex: voto eletrónico, círculos uninominais, formação cívica, etc.). Neste artigo, foco-me apenas no segundo.

Parece-me que o maior problema é a crescente desconexão entre partidos e cidadãos. Como ainda se mantêm as velhas lógicas internas, que com a nova sociedade de informação ficam crescentemente expostas, as pessoas tendem a afastar-se (veja-se esta reportagem e este artigo sobre os caciques do PS e PSD). Refiro-me, por exemplo, à valorização do carreirismo partidário em vez do mérito individual. Ou ainda, à marginalização daqueles que desafiam a prática de seguidismo das estruturas centrais (caso de Rui Tavares, Daniel Oliveira ou Ana Drago no Bloco de Esquerda). O mundo mudou, mas os partidos políticos insistem em fechar-se em si mesmos, seguindo hábitos de décadas (outro exemplo é esta entrevista do líder da JSD, cuja larga maioria do conteúdo é virado para dentro e não para o país).

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A este ponto, o leitor deve achar que sou contra os partidos. Muito pelo contrário: acho que são fundamentais para o funcionamento da democracia (sem movimentos organizados e mobilizadores, o sistema não funciona), portanto há que melhorá-los para estarem ao serviço dos cidadãos. A proposta mais ouvida, com a qual concordo, é a introdução de eleições primárias para candidatos a primeiro-ministro. Acho um modelo com virtudes: os candidatos passam a falar para fora, em vez de se focarem apenas em questões internas. Por exemplo, consegui acompanhar a nomeação dos candidatos François Fillon e Benoît Hamon com mais transparência do que a eleição para a presidência do CDS. Mas como se viu, isso não resolveu o problema: nenhum dos candidatos passou à segunda volta das presidenciais francesas.

Assim sendo, além das eleições primárias, deixo mais nove propostas concretas para aproximar os cidadãos da democracia. São medidas que podem ser implementados em qualquer partido, independentemente do quadrante ideológico. Têm como traço comum desafiar o dirigismo partidário, focando a relação partido-cidadão numa lógica descentralizada e colaborativa:

  1. Valorização do mérito, independentemente do percurso partidário:
    – Recrutar ativamente os melhores talentos nacionais para colaborar periodicamente com ideias programáticas e/ ou avaliação da governação;
    – Convidar especialistas de reconhecido mérito técnico (não necessariamente os “senadores” habituais) a integrar os gabinetes de estudo internos e, quando for o caso, a integrar a governação;
    – Definir padrões transparentes e objetivos de qualidade profissional nas nomeações para cargos internos e candidatos a eleições.
  2. Aproximação dos cidadãos da política e de uma participação pública ativa:
    – abrir periodicamente reuniões partidárias nacionais e locais à participação de cidadãos simpatizantes (ex: participação de munícipes nas Assembleias Municipais);
    – criar um Provedor do Cidadão em cada concelho, com especialistas por área setorial de governação nacional (ex: Educação, Saúde, etc.);
    – expandir a formação de quadros próprios (ex: Universidade de Verão do PSD) para ações descentralizadas de formação política (ex: Virada Política, no Brasil).
  3. Preparação de programas eleitorais com contributos de todos os setores da sociedade:
    – organizar fóruns de discussão temáticos em todo o país, presencial ou remotamente (internet) para recolha de contributos setoriais (ex: Estados Gerais do PS);
    – dinamizar conferências com os especialistas mundiais em áreas prioritárias para recolha de melhores práticas (ex: Reforma da Segurança Social noutros países);
    – disponibilizar o Programa Eleitoral um ano antes das respetivas eleições para recolha de propostas de melhoria dos cidadãos (ex: processo colaborativo da Reforma Constitucional da Islândia.

Lembro-me de há uns meses ouvir um ex-governante a dizer: “Acho que os partidos já morreram, só que eles ainda não perceberam isso”. Não podia estar mais de acordo. Ou os partidos se abrem, ou ficam a falar sozinhos.

Tiago Espinhaço Gomes tem 31 anos e é consultor de serviços financeiros na Oliver Wyman desde 2016. Anteriormente foi economista no Conselho das Finanças Públicas (2013-2016) e assessor do ministro das Finanças durante o programa de ajustamento económico (2011-2013). Começou a sua carreira na McKinsey como consultor de gestão (em 2009), após concluir a licenciatura em Economia na Faculdade de Economia do Porto.

O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. Ao longo dos próximos meses, partilharão com os leitores a visão para o futuro do país, com base nas respetivas áreas de especialidade. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.