Para escapar ao pátio das cantigas do nosso lusitano burgo, Nova Iorque é, no Outono, um refúgio vibrante de renovação, imaginação, criatividade, cultura, cosmopolitismo, surpresa: uma cura de ares, de resultado garantido para os espíritos irrequietos.

E tudo ajudado pela plena pujança do crescimento económico que se sente à flor da pele numa invulgar situação de pleno emprego. Como sempre, estes ciclos fazem com que os sucessivos cadáveres das vítimas, sempre repetidas, do liberalismo económico, dêem automaticamente lugar a novas e pujantes inovações tecnológicas, empresariais e culturais, sempre e cada vez mais produtivas, mais eficazes, mais criativas, e por menor custo.

Uma das vítimas mais visíveis do liberalismo económico são os táxis amarelos de NY. Há um ano, a licença valia 1,1 milhões de dólares. Mas agora, a ubiquidade, a rapidez e a qualidade de serviço dos taxis Uber deu forte golpe no valor de mercado dos amarelos, que se viu reduzido a cerca de metade. Assim, muitos dos actuais taxistas amarelos irão à falência, encontrando ocupações alternativas, possivelmente mais rentáveis que as anteriores. Por outro lado, o passageiro que viveu durante anos as angústias históricas para conseguir um amarelo, sobretudo nos rush hour de sexta à tarde, na aflição dos dias de neve a 15º ou 20º abaixo de zero, e nas correrias para a pontualidade, passa a ver emergir um taxi mais cómodo e mais limpo no prazo máximo de cinco minutos após tê-lo solicitado apenas pressionando a app do seu smartphone. Milagres do liberalismo económico e da criatividade.

Outro caso de sobrevivência a todas as crises e da aplicação de soluções criativas para a conseguir, é o do Metropolitan Opera House, no Lincoln Center. Além de centenas de mecenas cujos nomes aparecem no programa distribuído em cada sessão, e que contribuem com milhões de dólares para apoiar o Met, a gestão encontrou uma nova fonte de receita, iniciada há 10 anos, e que tem vindo a crescer de forma exponencial. Trata-se das transmissões em directo, via satélite e em HD, para centenas de salas de espectáculo, em todo o mundo, que na época transacta geraram uma receita de US$60 milhões. Foram dez óperas, transmitidas em directo para setenta países, em cerca de duas mil salas, incluindo a Gulbenkian, em Portugal. Aqui, o auditório principal encontra-se sistematicamente esgotado para estes espectáculos. Esta época 2015-16 vai repetir a receita, e o público português amante de opera vai assim contribuir para a esplendorosa luta pela sobrevivência do Met de Nova Iorque e acalentar o renascer da cultura operática portuguesa, tão debilitada nestas últimas décadas.

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Foi interessante ver Tannhauser, de Wagner duas vezes num espaço de uma semana. Primeiro, ao vivo, no Met, e oito dias depois, na transmissão por satélite no auditório da Gulbenkian. Foram duas revisitas diferentes, e tal como diz Jorge Calado no Expresso, “às produções de ópera nos anos 70”. Um simples “amador esclarecido”, classificará a versão em HD mais como um “divertimento” do que como refeição completa que em Nova Iorque o Met serve os seus 2.800 espectadores, sala cheia. Mas a versão em HD confirmou tudo aquilo a que assistira ao vivo nesta excepcional produção de Tannhauser, a operática e absolutamente wagneriana versão dos tormentos sempre gerados entre Eros e Tanatos. Duas visões distintas da mesma paisagem: no Met, abrangendo a floresta; na Gulbenkian, a partir da árvore.

Continuando a desfrutar o Outono na cidade que nunca dorme, nem já se referem as esculturas de Picasso patentes até 7 de Fevereiro numa exposição temática que ocupa totalmente o 4º piso do MOMA, um blockbuster com 141 peças apenas possíveis de reunir uma vez em cada 50 anos: imperdível. De um salto deve-se ir ao novo Whitney Museum, inaugurado no passado mês de Maio, e que mantém o mesmo perfil de insuperável exigência na qualidade das suas exposições temporárias. O magnífico edifício, novo a estrear, abriga nos seus diversos andares espaços perfeitos para expor obras de arte, que incluem, naturalmente, a sua coleção permanente. Mas, apesar da assinatura do prestigiado Renzo Piano, quem for à procura da novidade arquitectónica revolucionária, ficará surpreendido pelo facto de a Fundação Whitney não ter tentado uma arquitectura ousada. É uma excepção, um hiato na permanente imaginação borbulhante com que nos deparamos na Big Apple, a excepção necessária à afirmação da regra…

E, não surpreende que o clima económico tenha também permitido que a Livraria Rizzoli, encerrada com a crise a sua belíssima loja da Rua 57, tenha agora reaberto no nº 1133 da Broadway. Mantém a decoração clássica da anterior, mas tem renascida a mítica das suas edições, com magnificentes livros de arte, design, decoração de interiores, moda, e uma riquíssima oferta de livros de não ficção, acervo que continua a atrair clientes vindos do mundo inteiro.

Neste tom de conservadorismo defendido nos últimos 80 anos, encaixa a Frick Collection, essa fabulosa criação do industrial multimilionário de Pittsburgh, Henry Clay Frick, que instalou na sua mansão particular da 5ª Avenida, sobre o Central Park, construída no anos 30, uma das mais impressionantes coleções particulares de pintura do mundo. Só uma ideia: 4 Goya, 3 El Greco, 4 Frans Hals, 8 van Dyck, 8 Gainsborough, 2 Holbein, 3 Vermeer, etc, etc. A casa, transformada em Museu, recebe cerca de 300.000 visitantes por ano, e mantém o ambiente de fausto artístico em que Frick vivia a sua domesticidade. Quem não tenha lá ido há muitos anos reparará que nada mudou, tudo mantendo o esplendor discreto de um sibaritismo estético que nunca conseguiu ver-se repetido. Um retrato vivo do ambiente hiper sofisticado dos anos 30. E agora, o Museu quer-se reinventar, e crescer. Mas o debate é aceso e, por enquanto, aquele delicioso status quo é para ficar.

Regressando à permanente inovação, percorremos pela primeira vez o HighLine. Aqui essa inovação é nostálgica e urbana, e resulta do reaproveitamento de um viaduto elevado que levava até ao coração de Manhattan comboios de mercadorias. O elevated track (viaduto) morreu em 1960, ano em que se tornou obsoleto e a linha abandonada. A iniciativa dos moradores levou à fundação dos Friends of the HighLine, que conseguiram recuperar um importante troço, e transformá-lo num jardim suspenso com cerca de 2,5 quilómetros de extensão. Movimentados com êxito os lobbies políticos, o fund raising mobilizou US$165 milhões, e “fez”. Subir ao “elevado” na rua 34 e saindo na Gansevoort, ao lado do Whitney Museum, é um mergulho (elevado) na cidade. O HighLine, que foi concluído neste ano de 2015, recebe cerca de 5 milhões de visitantes por ano. O sucesso deste Projecto inter age com o sucesso do Meatpacking District, onde se situa, e onde se encontram as galerias de arte mais atrevidas de Nova Iorque, o Chelsea Market, os escritórios centrais da Google, o hotel Standard, o Whitney Museum, sendo um dos principais centros de moda da América. Ou seja, entorno de juventude, modernidade, ousadia.

Se não fosse um generoso convite, teria sido obsceno desembolsar entre US$400 e US$1000 por um bilhete para assistir à produção de Hamilton. Trata-se de um musical onde a originalidade (novamente), e a inovação (outra vez) são factores que, aliados ao toque nacionalista das stars & stripes, torna o espectáculo num dos maiores êxitos de sempre da Broadway, o que lhe vai garantir presença nos palcos de Nova Iorque e Londres por muitos e vindouros anos. A música é Hip Hop, e nela se embandeira o imparável ritmo do nascimento da nação norte-americana. E nesse incontestavelmente “novo”, assiste-se à reviravolta do género do musical, numa linguagem revolucionária e plena de frescura. A história está centrada na figura de Alexander Hamilton, um dos Founding Fathers, ao lado de George Washington, Thomas Jefferson, James Madison e John Adams. Estreado em Agosto no Teatro Richard Rogers, a crítica encomiástica é daquelas que surge uma vez cada 20 ou 30 anos, o que naturalmente provocou a corrida aos bilhetes. Estão esgotados por largos meses, só sendo possível adquiri-los a preços inflacionados no segundo mercado que, aliás, funciona no próprio teatro, havendo mesmo críticos que se dizem que se deve estar disposto a hipotecar a casa ou o carro par ver Hamilton. A força narrativa musical do Hip Hop é dinamizada por actores negros e latinos, usando a a dinâmica do linguajar desbragado que lhes é próprio nas ruas da América contemporânea. O testemunho do Rei Jorge III, o único “branco” entre os primeiros papéis, observa a revolta dos seus (ex) súbditos com uma ironia demolidora e um tom político hiperbólico. O realismo e modernidade da música e do texto permitem pensar que estas figuras históricas até estão assim mais bem retratadas do que em qualquer das tradicionais formas de os trazer às cenas, talvez daí resultando uma grande parte deste êxito.

Mas há jovens que não têm tempo par ir ver Hamilton. Desses, merece a pena focar o exemplo de vida de um português de 27 anos, emigrado na frente de batalha sem tréguas que é Wall Street. Vindo do Porto, mas agora com um Masters em Business Administration obtido numa prestigiada universidade norte-americana, trabalha 14 horas por dia num dos gigantes da finança. Casado, com uma mulher que se dedica à representação e comercialização de um produto português reputado, acabam de ter dois filhos gémeos. Vivem num pequeno apartamento com uma vista magnífica sobre o Hudson, ele a dez minutos a pé do emprego, ela a cuidar das crias e a trabalhar em casa. Um êxito. Todo um futuro. Brain drain português? Como em muitos casos, não. Apesar de tão novos, o regresso às raízes está num horizonte visível. E, quando ocorrer, virá carregado de um colossal capital de conhecimento e experiência. Uma reconquista para a nossa economia? Sim. Um caso único? Não. Como estes, há milhares a entesourarem experiência que irão regressar ao País e torná-lo mais competitivo, moderno, dinâmico e produtivo. Para Portugal, um maná a prazo. São gente moderna, com horizonte, coragem e determinação. São os novos navegadores que, agora transplantados do séc XVI para o século XXI, irão deixar a impressão digital por onde passam, e regressarão à terra de onde saíram carregados de especiarias intangíveis, mas valiosíssimas.

Esta última semana do outonal Outubro em Nova Iorque concluiu com outra nota de optimismo e orgulho para nós, portugueses. Foi na 35ª Conferência Anual da Wine Spectator. O preço para assistir aos três dias era de US$2195. Esgotou. Foram 5000 os especialistas que se reuniram para duas grandes sessões de prova, 15 seminários, dois almoços, e um jantar de smoking. Foram provadas 360 grandes marcas de vinhos, decantados de 7850 garrafas, bebidos em 64,500 copos. Como é habitual, a receita reverteu para a Wine Spectator Scholarship Foundation, que com iniciativas deste tipo já mobilizou US$20 milhões para proporcionar bolsas de estudo na área da indústria do vinho.

Mas, mais poderoso que estes impressivos super-números americanos, foi o muito relevante pódio, que apareceu dois dias antes da conferência numa página inteira do New York Times. Aí estavam os nomes e as fotografias dos participantes da nossa “seleção nacional”, absolutamente vitoriosa neste campeonato mundial de vinhos. Deixando para trás 96 nomes e marcas internacionais que se vendem por milhares de euros a garrafa, classificado em primeiro lugar entre os melhores do mundo apresentados em 2014, está o Dows Porto Vintage 2011; em terceiro, o Chryseia 2011, e em quarto, Quinta do Vale do Meão 2011. O êxito transfigura em grandeza a projeção global que estes três vinhos do Douro obtiveram nesta magna Assembleia das “Nações Unidas” vinícolas realizada em Nova Iorque. Com a consagração no vasto auditório onde tudo aconteceu, as folhas das vinhas do vale encantado vão, justificadamente orgulhosas, reflectir o ouro do fall novaiorquino na sua espectacular mudança de cor outonal, que nem os tons mágicos do Central Park em fins de Outubro conseguirão replicar.