(texto escrito antes dos atentados de 22 de Março)

Terça-feira, 14 de Março

Chegada calamitosa a Londres. Já nem me refiro ao sempre pesado trajecto Portela/Heathrow mas a esta forma contemporânea de martírio que são aeroportos como este. As pernas saem de lá aptas a ganhar uma maratona e o céu fica automaticamente ao nosso alcance com a (ininterrupta) prática da paciência, virtude como se sabe muito apreciada pelo Altíssimo. Corredores do tamanho de cidades, lentidão desesperante no zelo da “segurança”, filas sem fim para tudo, esperas e esperas, multidões sempre compactas- Desta vez havia uma avaria em quase todas as portas do passaporte electrónico agravada pelo facto dos funcionários, apesar de impecavelmente fardados (restos do Império Britânico) falarem o inglês desgraçado de quem acabou de chegar do Bangladesh ou do Paquistão, tornando incompreensível os nossos repetidos SOS. E cúmulo do bom remate, ausência da (minha) bagagem. Coisas do progresso: não deve haver nada que se tenha democratizado tanto como isto de “viajar”e de haver tanta gente nos ares ao mesmo tempo.

O que coloca uma questão interessante: continuaremos a viajar com gosto apesar deste leque de constrangimentos que só se abre e nunca se fecha? Ou não teremos outro remédio senão a rendição, percebendo que por definição nunca haverá tecnologia que acomode – e resolva – a vertiginosa e compulsiva procura da viagem?

Quarta-feira, 15

Brexit. Está nas agendas, nas chancelarias, nas conversas, nas televisões, nas mesas dos restaurantes, nos jantares políticos, nos jornais. Está em todo o lado mas não está bem. A verdade é que se poucos esperavam tal resultado, nenhuns o prepararam. Um ser normalmente constituído pode até interrogar-se sobre esta incipiência: como foi afinal possível tão pouca cautela, tão pouca prudência, tão pouca informação, tanta ignorância, face à extrema complexidade do “enjeu”?

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Como julgariam “eles” – os brexiteers – que era? Ler uns papeis, alterar umas leis, assinar umas coisas?

O Partido Conservador – no poder antes e depois da votação do Brexit – tenta recuperar terreno, recuperar da surpresa, desvalorizar a sua própria impreparação. Theresa May parece escorregar entre os dois lados da espinhosa empreitada enquanto o país, meio às cegas, se prepara para o tiro de partida das negociações e a outra metade se aterroriza com a burocracia que aí vem. A ideia com que se fica ao falar com gente daqui é que… “há-de ir andando”. Ao sabor das contingências, exigências, ocorrências. Um caminho que se irá fazendo… caminhando. Londres mantém-se a fortíssima praça financeira que é, e assim se deverá manter durante bastante tempo, já que todo o universo da alta finança e da banca é isso que deseja. Pelo menos até que se conclua a apreciação do real impacto do Brexit sobre o sistema financeiro inglês pois só isso permitirá que os grandes bancos estejam em condições de ponderar – e organizar – a sua futura estratégia europeia.

No mais, Londres, um esplendor: para usufruir, para a vista, a observação, os sentidos. Em sessões contínuas, sempre reeditadas, nunca iguais. Não conheço cidade assim. Tão “alive”. Tantos mundos numa só geografia, praça forte financeira, oferta cultural imbatível, metrópole criativa de onde jorram extremos que se tocam e cruzam, sede da melhor imprensa do mundo, sede de um suculento debate público, fonte de permanente espectáculo – da rua a Buckingham Palace e fornecedora de imutável civilidade, voz ciciada e boas maneiras. E, last but not least, de uma natureza humana talvez a mais sui generis do planeta. Mesmo sabendo-a nós tão capaz do melhor como do pior.

Quinta-feira, 16

Falando de oferta cultural imbatível, na National Gallery está o melhor: “Michelangelo and Sebastiano”, uma história forte, protagonizada pelos dois génios rivais da Renascença italiana, Michelangelo e Raphael, com um “obreiro” quase tão genial pelo meio, o pintor Sebastiano del Piombo. Quando em 1511 o veneziano Sebastiano se muda para Roma – onde o “palco”e o fôlego da criação artistica pertenciam a Michelangelo e a Raphael – Michelangelo viu no talento do jovem recém chegado o melhor dos meios para acabar com a demencial rivalidade que o opunha a Raphael. Fornecendo-lhe os seus próprios desenhos, dotando-o de esboços e estudos, foi “educando” o gesto e o gosto de Sebastiano, fazendo dele o rival do… seu próprio rival. Intriga, ambição, fé, inveja, dinheiro, poder costumam fazer boas histórias e nesta, como não podia deixar de ocorrer em Roma, também há um Papa. No caso Júlio II, convocador do V Concílio de Latrão, colocador da primeira pedra da actual Basílica de S.Pedro, protector da arte e da cultura em Roma. Mas esta história é grande porque nos deixou o génio em herança. O génio e esta milagrosa oportunidade de vermos ao vivo a irradiação, o fulgor, o alcance, desse génio.

À noite, jantar londrino onde encontro José Manuel Durão Barroso que há muito não via e que reencontro com gosto. Curiosamente com mais gosto e maior empenho do que quando exerceu funções de primeiro-ministro, mas isso é outra história. (Que entre mil outras, aliás, espero que ele conte um dia pois julguei perceber que estaria a escrever ou pelo menos a preparar-se para isso.) Mas fosse porque tem hoje uma vida mais solitária, porque estava em casa amiga, ou porque simplesmente estava bem disposto, ouvimos muito. Loquaz, muito mais solto que o habitual, viajou – não vejo melhor termo – por algumas moradas da sua história e por algumas pessoas que as habitaram. Tomou muitas notas, viveu muita coisa, lembra-se de tudo. Diante de um magnífico “lamb”, soltou com minúcia a sua bem organizada memória enquanto eu pensava em como Portugal, a nossa (infeliz) classe política, a media, a esquerda e um bom número de portugueses mal informados conhecem mal e apreciam pouco Durão Barroso, concordem ou discordem dele politicamente. Basta lembrar que Guterres só lhe falta subir a um altar tão santificado é, enquanto Durão nos é vendido quase como um celerado. Mas a esquerda é isto. Implacável e de compulsiva arrogância a decidir quem são os filhos e quais os enteados. Por preconceito, má fé ou puro ódio, sempre fulanizado, a esquerda tranca num alçapão aqueles que a estorvam, independentemente de haver ou não mérito, serviço ao país, ou de qualquer mais valia que não tenha a sua assinatura.

Sexta-feira, 17

Almoço na embaixada de Portugal com o embaixador Manuel Lobo Antunes. Tête-à-tête vivo, com alicerces de amizade antiga. Mas quando eu julgava que na agenda do meu anfitrião estaria o Brexit, Trump, Putin, o (relativo) alívio pelo resultado das eleições holandesas e quem sabe até a geringonça (que ele aprecia e eu não) foi afinal de nós mesmos, dos nossos filhos e desta coisa da vida que falámos. Ouvi-o com gosto infinito falar-me dos Lobo Antunes. Do pai, da mãe, do irmão Pedro que era o “rassembleur”, da casa de Benfica. E, de repente, uma aguarela pintada há mais de cinquenta anos estava ali, diante de nós, pendurada numa parede de Belgravia Square. Depois, mas eu sabia que esse “depois” chegaria, ele parou na memória dolorosa do João, padrinho e irmão mais velho bem amado. Ali à mesa, tão depressa tínhamos vinte ou trinta anos como éramos os avós que já somos, tanta história corrida e tanta vida vivida. Um encontro cuja sintonia feita desse mesmo entendimento sobre duas ou três coisas essenciais, salta qualquer fronteira, ideológica, religiosa, partidária. São as amizades de boa colheita. Como esta.

De tarde, David Hockney na Tate Britain e foi preciso marcar lugar, que em Londres coabitam todos os dias 15 milhões de pessoas. Olhar, re-olhar, parar, voltar “àquela”sala, entrar noutra, sair, voltar ao início, repetir o circuito. Sim, é preciso um grande, imenso talento para “saber” inscrever numa tela o mais exaltante júbilo, deixar impressa noutra a mais fina camada de melancolia de que um pincel é capaz, e noutra ainda, o inconfundível traço da mais pungente solidão humana. Tudo isto lá está, oferecido como um dom, por este vibrante, versátil, vivo e vário octogenário britânico que nos pinta a vida como ela é e nos traz o mundo como ele está.

Sábado, 18

“Aladino” com os netos mais velhos, Luis, 11, Vicente, 7 (e bilhetes adquiridos há três meses). O West End lembra uma espécie de gigantesco souk: vende-se quinquilharia, há anúncios luminosos, cartazes, milhões de pessoas na rua, trânsito, comida, rickshaw, bicicletas, dezenas de teatros de portas abertas para a matinée das 14h30. Ali perto uma concentração de policias como jamais vi, a rodear a manif que ocorrerá daqui a pouco em Picadilly mas na correria para o Prince Edward Theatre faltou-me o tempo de perguntar qual era o protesto do dia.

“Aladino”, incensado pela critica e com lotação esgotada desde que estreou é uma produção da Disney, importada dos Estados Unidos, onde tudo é feérico e mágico. Mas apesar dos (inacreditáveis) efeitos especiais rivalizarem com os do cinema, havia ali algo de artificial, que não me colou ao palco.

Como já vi aqui a maior parte das peças musicais “infantis” ou “juvenis” em cartaz preferi as britânicas. Para meu grande contentamento, os netos, que as viram comigo, também preferiram.

Domingo, 19

A leitura dos jornais ingleses de fim-de-semana é rotina obrigatória, uma espécie de missa dominical e simultaneamente um lugar assegurado no nirvana. Que mais gabar? A qualidade editorial? O critério dos conteúdos nos diversos suplementos? O número, as escolhas e a variedade desses mesmos suplementos? A torrente de debates, propostas, ideias, reflexões, “novidades” que dali irrompe? Financial Times, Sunday Times, Daily Telegraph… Páginas e páginas que apetece devorar, re-devorar, guardar, mandar aos amigos, mas não há tempo nem cabeça para aviar tudo hoje. Ainda assim, e entre algumas iniciativas que me fariam ficar por cá, deixo registo da mais sedutora: a vigésima primeira edição do Finantial Time Week-end Oxford Literary Festival ( de 25 de Março a 2 de Abril, em Oxford.) Wiiliam Boyd, o antigo Arcebispo da Cantuária, George Carey, Hilary Mantel, Vilcram Seth, Alfred Brendel, Stephen King, irão lá estar entre muitos outros. Antevê-se uma plateia muito interessada diante de elenco tão interessante. A programação é farta mas no dia 1 de Abril Alec Russell, editor da edição de fim de semana do FT, será entrevistado sobre essa ameaça aterrorizante que são os “factos alternativos”: “The Art of the Interview in the Post Truth Age” assim se chama a sessão e melhor deve ser difícil. Quando é a sério, é a sério.

Segunda-feira, 20

Hei-de voltar para Lisboa a arrastar-me nos penosos corredores de Heathrow com dez quilos de papel na mão, se não forem mais, abençoado papel. Não há lugar nenhum no mundo onde me aperceba, com tanta volúpia, do toque, do cheiro, do gosto, da necessidade do papel de jornal.