Com a publicação do despacho n. 6668/2017, o Gabinete do secretário de Estado Adjunto e da Saúde concedeu a todos os utentes com idade inferior a 18 anos o direito de terem presente no Bloco Operatório um dos pais, ou um acompanhante, durante a indução da anestesia. Sob uma aparência de “humanização” (principal objectivo que o próprio despacho enuncia), esse diploma legal é um enorme erro, técnico e político.

No preâmbulo do despacho, o legislador deixa bem claro que os seus fundamentos são “estudos publicados no Reino Unido e nos Estados Unidos da América”. Ora, na verdade, há vários outros estudos de sinal contrário; aliás, os livros de texto de Anestesiologia dizem claramente que não se sabe o que será melhor, para a criança e para todos os envolvidos: a presença ou a ausência dos pais no Bloco. Mas, ainda que existissem “estudos” absolutamente consensuais a nível mundial, seria inédito um Governo decretar um procedimento clínico único, sobretudo numa área em que há tantas variáveis envolvidas.

Apresento dois exemplos. No início da década de 1990, o fármaco Tiopental era o anestésico “standard”, que se usava quase sempre. Surgiu então o Propofol, universalmente considerado pelos “estudos” como superior ao Tiopental; em poucos anos, o Propofol tornou-se no anestésico “standard”, que se usa quase sempre. Não foi preciso nenhum diploma legal para impôr o “direito” dos utentes a que lhes fosse administrado Propofol. Mais, tal diploma imaginário poderia levar a graves problemas nos casos específicos em que o Propofol não é o fármaco mais indicado. Ou seja, não se pode impôr, por decreto, o uso sistemático de um fármaco, de uma técnica ou de um procedimento, por mais que “estudos” aconselhem o seu uso. Aliás, fármacos e técnicas quase caídos em desuso voltam a usar-se – quando novos estudos o aconselham. É o processo livre da Ciência, no qual nenhum Governo deve interferir.

Um segundo exemplo: há vários anos que os “estudos” são unânimes em considerar que, para terminar os efeitos de uma anestesia geral, o fármaco Suggamadex é muito superior ao fármaco Prostigmina. No entanto muitos utentes continuam ainda a receber o fármaco “pior” – porque é muito mais barato do que o fármaco “melhor”. É uma decisão médica que tem também em conta o factor económico. Não teria lógica que um Governo que se mostra tão atento às conclusões dos “estudos” e tão preocupado em legislar no interesse dos utentes decretasse o “direito” desses utentes a que lhes fosse administrado o fármaco melhor, retirando essa decisão da competência dos médicos?

Ao contrário de muitos dos meus colegas, eu anestesio as minhas crianças na ausência dos pais. Converso com elas na presença dos pais e explico-lhes o procedimento (com um tom que descreveria como “uma firmeza carinhosa e bem disposta”). E as minhas crianças, com 3, 4 ou 5 anos, vêm tranquilamente, alegremente, sozinhas comigo para o Bloco. Estabeleço com elas (e com os pais) uma relação personalizada, uma relação de confiança, que é a base de toda a relação médico-doente. Deve um Governo proibir esse tipo de relação, fomentando publicamente a desconfiança dos utentes quanto à capacidade dos anestesistas portugueses para decidirem o que é melhor para os seus doentes? E que dizer do facto deste diploma “meter no mesmo saco” recém-nascidos, crianças de idade escolar, ou adolescentes de 17 anos?

É que, por detrás desta aparente preocupação com a “humanização”, o que o Governo fez foi impor um procedimento único, ou seja, promover uma “massificação”. A verdadeira humanização está no tratamento personalizado, individualizado, e não na massificação – que é o seu inverso. Cada caso é único, e a função do médico é avaliá-lo e agir da forma mais adequada. É essa a essência da arte médica. É lamentável que, no seu constante afã de legislar, os nossos governantes da área da Saúde não tenham conseguido perceber essa dinâmica essencial. É igualmente incompreensível que a Ordem dos Médicos, que o diploma diz ter sido “ouvida”, não se tenha oposto com a maior veemência. Ela merece uma chamada de atenção à qual, estou certo, não deixará de responder. A liberdade de decisão dos médicos e o interesse dos nossos doentes assim o exigem.

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