Generalizar é fácil. E generalizar sobre corrupção, enriquecimento ilícito, lavagem de dinheiro é ainda mais fácil. Quando a tais crimes, previstos e punidos por vários Códigos Penais no Mundo, juntamos “famosos” e outros crimes como o tráfico de seres humanos, o tráfico de droga, o financiamento do terrorismo, ou até a pedofilia, temos a receita perfeita para uma telenovela que será, certamente, líder de audiências.

Não discutindo, nem sequer colocando em causa, o óbvio interesse público que tais temas têm, e portanto, a necessidade de deverem ser tornados públicos, a verdade é que a forma generalista, quase simplista, como o Panama Papers tem sido publicado e discutido me parece mais uma caça às bruxas, do que um tema jornalístico, e, se for caso disso, de um tema de polícia e de justiça.

Senão vejamos. Encaixar no mesmo lote todos os crimes acima enunciados já de si me parece um absurdo (tanto formal como material); querer equiparar a corrupção ao tráfico de seres humanos, ou o enriquecimento ilícito à pedofilia, é, além de tecnicamente errado, materialmente populista.

Mas, mais do que isso, querer equiparar tais crimes ao exercício de planear e gerir custos e proveitos de particulares ou empresas, ou seja, querer igualar crimes económicos e crimes contra a vida, ao planeamento fiscal legal, repito, legal, é um exercício demasiado forçado até aos olhos dos mais leigos.

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A gigantesca fuga de informação pôs a nu diversas estruturas (umas legais, outras ilegais), que envolvem diversas personalidades das mais diversas geografias. Àquelas, a privacidade não é um direito, e portanto, devem ser expostas o mais possível porque os carrascos estão com sede de sangue.

Publicar, sem filtro, isto é, sem distinguir aquilo que é legal daquilo que não o é, trata-se de puro populismo jornalístico.

Merece o “fulano A”, lá porque tem património num paraíso fiscal e comprou os serviços da Mossack Fonseca, tendo em vista a pura optimização fiscal do seu rendimento, dever aparecer na mesma fotografia que um traficante de droga Mexicano, ou um pedófilo Russo, que comprou os serviços da dita sociedade de advogados para lavar “dinheiro sujo”? Certamente que não.

O debate em torno do Panama Papers ressuscitou dois temas de maior interesse: a existência de paraísos fiscais e a sua admissibilidade num contexto global cada vez mais exigente em matéria do fim do sigilo bancário, de transparência e de troca de informações entre Estados e administrações fiscais; e o da competição fiscal entre os Estados.

Comecemos pelo primeiro tema. Faz hoje sentido existirem paraísos fiscais e regimes offshore? Sim.

Os ditos paraísos fiscais não servem apenas para reduzir o montante de impostos a pagar. Razões como a estabilidade dos seus sistemas políticos, ou a segurança e certeza jurídicas que lhes estão associadas justificam, a meu ver, a sua manutenção.

Mais, fará sentido a União Europeia ou os EUA “exigirem” o fim destas jurisdições solarengas, também elas Estados soberanos e independentes? Do ponto de vista do Direito Internacional, que direito têm a União Europeia e os EUA para “exigirem” que o Uruguai, Singapura ou Hong Kong alterem os seus sistemas fiscais? Nenhum, parece-me.

Ora, este aspecto leva-nos até ao segundo elemento de interesse que o escândalo Panama Papers levantou: o da competição fiscal entre os Estados.

Sabendo que a Alemanha, a França ou a Espanha não podem “exigir” ao Panamá (ou a qualquer outro Estado) que altere o seu regime fiscal, a única solução que me parece plausível é que os primeiros alterem os seus próprios sistemas fiscais, no sentido de poderem tributar empresas e particulares (residentes fiscais nos seus territórios) com operações em paraísos fiscais. Ora, o tema não é novo, e muitos Estados já o fazem, através de controlled foreign company (CFC) rules, as quais servem precisamente para tributarem rendimentos que tenham origem por exemplo, em países de reduzida ou de nenhuma tributação.

Contudo, tais medidas colocam um problema de competição fiscal entre Estados. Senão vejamos: Portugal, adoptando uma postura mais agressiva e mais restritiva em relação aos paraísos fiscais, que aquela que os seus parceiros Europeus como o Reino Unido ou a Holanda adoptarem, torna-se necessariamente menos competitivo do que estes países, logo, menos atractivo para qualquer investidor estrangeiro. O resto da lengalenga já sabemos: menos investimento significará menos emprego, menos riqueza, menos receita fiscal, e menos crescimento económico.

Não vejo pois, como é que se poderá fazer a quadratura do círculo: ser mais competitivo do ponto de vista fiscal, adoptando simultaneamente uma postura mais agressiva em relação aos ditos paraísos fiscais.

O Panama Papers além de não distinguir aquilo que é crime daquilo que não o é, coloca a discussão num plano moral e ético, e não no campo legal.

Questionar e inquirir sobre a moral, ou a falta dela, das pessoas e das empresas envolvidas no Panama Papers é algo próprio e característico não de um jornalismo que se quer isento e não opinativo, mas da Inquisição dos séculos XV e seguintes.

Não podemos num dia crucificar o uso de paraísos fiscais por parte das mais diversas multinacionais, e no dia seguinte “exigir” bens e serviços mais baratos e tecnologicamente mais avançados. Não perceber que as estruturas societárias das empresas e os preços daquilo que compramos como consumidores estão intimamente relacionados é, numa palavra, ingénuo.

Uma nota final, e que espero esclarecedora: todos aqueles que se venha a provar que cometeram crimes no âmbito do Panama Papers devem obviamente ser punidos de acordo com a legislação penal em vigor.