Existem duas questões distintas, mas complementares, que importa levantar quando falamos do alargamento da ADSE. A primeira é de natureza moral e jurídico-constitucional, e a segunda é de natureza económico-financeira. A primeira questão é de princípio, e procura esclarecer se este subsistema de saúde deverá ser, ou não, de usufruto exclusivo dos funcionários públicos. A segunda questão permitirá quantificar o impacto económico e financeiro desse alargamento, e, assim, determinar se o alargamento é exequível.

Quanto à primeira questão revejo-me na posição do André Azevedo Alves, que num artigo publicado aqui no Observador escalpelizou a sua fundamentação, e denunciou a ambivalência do Princípio de Igualdade, que nesta problemática parece estar em défice. Independentemente do teor da interpretação da norma jurídico-constitucional do Princípio de Igualdade, que aborda a legalidade, interessa discutir a moralidade da questão, isto é, a sua legitimidade. Ora, a ADSE não é apenas uma condição de um contrato laboral, é um subsistema de saúde oferecido pelo Estado, Estado esse que deve primar, no actual quadro constitucional, pela equidade e tratamento indiferenciado dos seus cidadãos. O Estado não é, por conseguinte, um empregador qualquer. Os benefícios indirectos que disponibiliza aos funcionários públicos, em particular a ADSE, mas também uma aposentadoria privilegiada, com menos anos de trabalho, como sucedia com a CGA, não deverão originar uma cisão donde resultem cidadãos de 1ª — aqueles que estão sob a cúpula do empregador Estado — e de 2ª — todos os outros. Esta é, obviamente, uma posição de princípio, e, como tal, subjectiva. Aqueles que discordarem do racional de que o Estado não deve diferenciar os cidadãos terão, com toda a legitimidade, uma visão distinta da aqui apresentada.

Resta responder à segunda questão, procurando perceber a viabilidade económica do alargamento. Esse é precisamente o prisma sob o qual o Luís Aguiar-Conraria aborda o alargamento da ADSE, numa crónica publicada também aqui no Observador. Segundo ele, o alargamento criará um problema insuperável de sustentabilidade, o que conduziria, por fim, à sua extinção. Os potenciais perigos elencados são, com efeito, relevantes. Numa perspectiva económica há o perigo da selecção adversa, isto é, a ADSE seria procurada apenas por aqueles com menores rendimentos e já com alguma patologia, enquanto que os cidadãos de maiores rendimentos e saudáveis abandonariam a ADSE. Mesmo que tal não acontecesse poderia pesar, ainda assim, o efeito de contribuições mais reduzidas, pois os salários no sector privado são mais baixos do que no sector público.

Numa perspectiva financeira, o problema da sustentabilidade da ADSE tal como esta existe, sem considerar qualquer alargamento, também se coloca. Num estudo recente publicado pela Porto Business School, da autoria de Álvaro Santos Almeida, Nuno de Sousa Pereira e Susana Oliveira, é analisado o futuro da ADSE precisamente nesta óptica. A sustentabilidade depende, fundamentalmente, do número de renúncias, em particular daqueles com contribuições mais elevadas, da despesa imputada por cada beneficiário e da capacidade de capitalizar os excedentes orçamentais, financiando assim défices futuros. Nos vários cenários propostos, e não considerando o alargamento da ADSE, existe, de facto, o risco real de insustentabilidade da ADSE no actual quadro de benefícios e de contribuições. Esta questão não é, portanto, de somenos importância.

Devo discordar, em tom respeitoso, do fatalismo determinístico do Luís Aguiar-Conraria. Não ignorando todas estas questões, que são reais, a natureza não-linear da economia não permite veredictos antecipados. É necessário um estudo que efectivamente quantifique todos estes efeitos. Isto porque também existem efeitos benéficos de 1ª e de 2ª ordem com o alargamento da ADSE. Em primeiro lugar, o alargamento da ADSE permite usar, de uma forma transparente, a capacidade instalada do sector privado, aliviando a pressão sobre o SNS. Note-se que um paciente tratado em regime de convénio no sector privado representa um custo para a ADSE, mas é menos um custo para o SNS — em medicamentos, em material clínico, em meios complementares de diagnóstico e terapêutica. Ou seja, liberta recursos no SNS. Um contra-exemplo ajuda a perceber porquê: imagine-se que os actuais 1.2 milhões de beneficiários da ADSE deixavam de ir ao sector privado e iam todos ao SNS. O efeito de 2ª ordem disto é que, aliviada a pressão sobre o SNS, o próprio SNS melhore. Os profissionais de saúde, menos pressionados com trabalho, menos sujeitos a horas-extra, terão agora melhores condições de trabalho. Melhorada a qualidade do SNS, não é óbvio que um cidadão com um baixo nível de rendimento queira despender 3,5% do seu salário, ou o valor ajustado a este alargamento, para aderir à ADSE, quando pode simplesmente usar o SNS. Em terceiro lugar, o alargamento da base de beneficiários da ADSE conferirá maior poder negocial à ADSE, permitindo alcançar condições contratuais ainda mais favoráveis com os prestadores de saúde, e reduzindo o custo per capita com despesas de saúde.

Equacionado tudo isto, torna-se claro que a questão económico-financeira deve ser estudada e fundamentada com rigor, pesando custos e benefícios. É também necessário perceber que alterações teriam de ser feitas à ADSE, se algumas, incluindo o montante da contribuição, os benefícios oferecidos, etc., para que o alargamento seja exequível. À vontade política deverá preceder sempre a viabilidade económica — um princípio que, por si só, já seria um notável progresso no contexto das políticas públicas em Portugal.

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