A abolição da pena de morte no estado norte-americano do Nebraska, movimento que se acelera naquele país e um pouco por todo o mundo; a condenação à morte de cidadãos nacionais e estrangeiros na Indonésia que perturbaram as autoridades de países como o Brasil ou a França – episódios recentes de um assunto por pacificar, apesar e por causa dos avanços civilizacionais. Os incómodos manifestam-se quando o banimento da pena de morte não transforma em residual a morte associada à violência criminal. A última coloca em causa o mesmo fundamento da ordem civilizacional que legitima a abolição da pena de morte: a inviolabilidade da vida humana.

A anteceder a ambição de abolir a pena de morte está a relação com a morte, fundadora da condição humana. Será tapar o sol com a peneira ignorar que populações dispersas pelo mundo, mesmo em tempos de paz, sobrevivem angustiadas pela omnipresença da morte. Vale a pena circular semanas, meses, anos consecutivos em bairros suburbanos e periurbanos pobres, por exemplo, de África. Sem grande esforço, captar-se-á a invasão perturbadora do quotidiano pela morte através do confronto com a frequência de trajes de luto, choros lastimados numa ou noutra habitação, cerimónias fúnebres em quintais que, por vezes, transbordam para os caminhos contíguos, rostos e conversas que espelham perdas de vidas, escritos dependurados ou colocados à porta das habitações ou poder-se-á mesmo vislumbrar um ou outro cadáver num descampado ou estendido numa estrada.

Se as intromissões da morte têm sobretudo a ver com uma dada tipologia de causas (doenças, epidemias, malnutrição, acidentes rodoviários, feitiçaria), no entanto é mais provável ser uma outra tipologia, mesmo quando as suas consequências são comparativamente residuais, a morte associada ao crime (homicídios, linchamentos, ação policial), a espoletar as reações populares mais ostensivas contra a angústia de morte.

A última variante costuma ser sinónimo de um dado indivíduo, de repente, ter sido atingido a tiro, esfaqueado, agredido. Por regra, o trauma gera expetativas coletivas elevadas do agente mais facilmente responsabilizável pelo ‘mal da morte’, o criminoso homicida, ser identificado, capturado, julgado, condenado. Se a resposta não chegar, de preferência rápida e convincente, sobretudo em situações de crime persistente, a hipótese alternativa, linear no senso comum, é a da atribuição de responsabilidades a entidades, também elas, fácil e objetivamente reconhecíveis: polícia, sistema de justiça, governo.

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Pelas suas características, o crime funciona como alimentador por excelência de sentimentos de frustração social, tanto pior quando a vida se encontra desvalorizada pelo ‘mal da morte’. A situação favorece o agravamento de diversas violências, em particular da criminal. Andando a morte à solta, ostracizá-la de modo seletivo pela abolição da pena de morte pode resultar em efeitos inversos a nobres ambições civilizacionais.

Para se perceber por onde se tem caminhado, no senso comum moçambicano é tão inaceitável que um agressor criminal violento não seja condenado, quanto inimaginável que o estado garanta a sua alimentação, saúde, condições de habitabilidade, segurança ao longo de vinte e quatro anos (o máximo previsto no código penal). Um indivíduo que viva na pobreza ou na pobreza extrema, percentagem da população não desprezível, e sem qualquer relação com o crime sabe que não conseguirá garantir para si condições de vida equiparáveis e por tanto tempo quanto o que a lei moçambicana escrita preconiza para os criminosos.

Estas irracionalidades na regulação da vida de populações concretas têm sido impulsionadas e sustentadas por organismos supra-estatais, a ‘progressista’ ONU à cabeça.

Não menos decisivas têm sido as deficientes capacidades de domesticação coletiva dos traumas da morte. Elas resultam da acidentada, acelerada ou radical dessacralização da vida social, outra fatura das utopias ‘progressistas’ que vai chegando. Esforços recentes e crescentes de regresso ao sagrado, nos quais indivíduos e famílias comuns investem por si mesmos, dificilmente reverterão os lastros de anomia social entretanto semeados por décadas de imposições descontroladas de laicismo. Os maiores responsáveis por esta pesada herança civilizacional figuram entre os heróis intelectuais ou estadistas do século XX.

Neste caldo de dificuldades, o voluntarismo abolicionista ficará também abalado quanto mais predispostos estivermos a captar, sem julgamentos apriorísticos, o modo como a pena de morte é avaliada nos ‘discursos da rua’, isto é, quais os argumentos do quotidiano que sustentam a admissibilidade ou a rejeição da prática. A relação legal, institucional e formal de diversas sociedades contemporâneas com a pena de morte constitui um caso-tipo de exportação de modelos de regulação da vida social de países desenvolvidos do hemisfério norte para países em vias de desenvolvimento do hemisfério sul. O tempo encarrega-se de ir fazendo estalar o verniz.

Nesse sentido, a recusa manifesta legal, formal, institucional e socialmente generalizada da pena de morte pode revelar-se problemática quando, numa mesma sociedade, paira latente a admissibilidade de práticas informais de aplicação da pena de morte que se refletem – para além da frequência de homicídios – na tolerância à violência policial com efeitos letais ou a práticas linchatórias. Tais dissonâncias entre retóricas na defesa de princípios e práticas quotidianas efetivas deixam poucas dúvidas sobre a frágil capacidade dos poderes tutelares em regular a vida quotidiana desde as suas manifestações elementares.

Também aqui vão sobressaindo as heranças vivas do ‘progressismo’ do século XX. Manifestam-se na regressão a estádios quase infantis nas relações estabelecidas com as funções sociais da autoridade. Diversas sociedades dispersas pelo mundo revelam-se quase incapazes de discutir os seus falhanços no domínio do exercício da autoridade, apesar das consequências serem por demais óbvias todos os dias. Nas famílias, nas salas de aula, nas ruas, em bairros inteiros. Esta tendência revela-se habitualmente trágica para os menos afortunados.

Se desviarmos o olhar das excecionais sociedades ocidentais, seremos confrontados com um dilema: num dado país o código penal inclui a aplicação da pena de morte formal, mas as penas de morte informais (homicídios, violência policial, linchamentos) são residuais (e.g. China ou Indonésia); num outro país com um código penal avançado que interdita a pena de morte, no entanto as mortes informais associadas ao crime são relativamente frequentes (e.g. Brasil ou Moçambique). Onde fica melhor salvaguardado o princípio da inviolabilidade da vida humana?

Resistimos em aceitar que a vida quotidiana não se submete necessariamente à nobreza de princípios de valor moral abstrato inquestionável e que a realidade prática também conta. Quanto mais nos distanciamos do hemisfério norte, tanto maiores os desafios que enfrentam os sistemas de regulação da vida social em instituírem e manterem pontos de equilíbrio eficazes. Por aí passa a proteção da qualidade de vida das populações, a começar pela minimização ou ultrapassagem da pobreza.

Será ainda pouco provável que as penas de morte informais associadas ao crime (homicídios, resultantes da ação policial ou dos linchamentos) sejam endémicas e relevantes em sociedades que, face à sua ocorrência, desenvolvam sentimentos genuínos, coletivamente partilhados, de ‘pânico moral’ ou que invistam em ‘cruzadas morais’ contra aquilo que atenta contra os fundamentos da sua ordem moral e social. Se admitirmos que as sociedades são muito condicionadas pelo que existe para além de discursos formais bem-intencionados, entenderemos por que razões a lógica é válida, para citar exemplos, no Canadá, na Rússia, na África do Sul ou na Austrália.

Recorro a episódios conhecidos. Os protestos recentes nas cidades de Baltimore e antes de Ferguson, nos Estados Unidos da América, contra a morte de suspeitos negros às mãos de polícias brancos não assumiriam uma natureza endémica se uma parte da comunidade branca, pela sua indiferença, não os ratificasse, mas não menos se uma parte importante das próprias comunidades negras não fizesse exatamente o mesmo. O crime ou as suas consequências (pobreza, toxicodependência, abusos sexuais, abandono escolar, entre outras) atingem acima de tudo as comunidades dos próprios agressores. Quanto mais as comunidades são atingidas, mais tendem a ratificar, pelo seu silêncio ativo, práticas informais anticrime.

A deficiente sensibilidade ao que existe para além do óbvio, a deficiente capacidade de se chegar por hábito ao lado recalcado e decisivo da vida social em muito se deve a universidades e comunicação social que foram tornando quase impossível captar a complexidade do mundo e da condição humana enquanto tais. As suas mais recentes derivações, os ‘movimentos sociais’ ou ‘movimentos de protesto’, por regra contam-se entre os principais obstáculos à melhoria da vida quotidiana. Haverá seguramente exceções.