Enquanto os escândalos se sucedem e vamos ficando cada vez mais anestesiados, as lavandarias continuam a trabalhar bem por todo o mundo, para grande satisfação dos seus ocultos clientes, na mesma medida em que empobrecem os Estados e seus povos, eternamente condenados a contribuições acrescidas para tapar défices (ditos) públicos, a resgatar bancos e a assegurar rendas a grandes empresas que os sagrados mercados nunca gerariam.

Ao mesmo tempo, muitos recusam fazer seriamente o debate sobre o tratamento a dar ao suspeito de crime grave que pretende colaborar com as autoridades na recolha de prova. Uns vivem eternamente no dia 24 de Abril de 1974, agarrados a traumas antigos, outros no Brasil, equivocados com o presente. Uns e outros fazem por ignorar que a colaboração premiada já existe em Portugal. Não funciona, por que não foi feita para funcionar. Mas existe. Não precisamos, pois, de importar o regime do Brasil. Podemos, contudo, aprender com ele: apreciando o que tem de positivo, evitando o que tem de negativo. De caminho, não usando o termo delação, que nem no Brasil é o do instituto jurídico, e pondo o nosso regime a funcionar.

Como em muitos outros aspectos do nosso sistema jurídico, este é mais um que é só faz-de-conta. Conta para se dizer que cumprimos compromissos internacionais, mas com ele nada se faz.

As convenções da ONU contra a criminalidade organizada transnacional e contra a corrupção impõem a cada Estado Parte a adopção das medidas adequadas para encorajar as pessoas que participem ou tenham participado em grupos criminosos organizados a fornecerem informações úteis às autoridades competentes para efeitos de investigação e produção de provas, podendo depois beneficiar redução de pena ou mesmo de imunidade. Claro, já adivinhou: Portugal está obrigado por estas convenções.

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O Comité de Ministros do Conselho da Europa recomenda até a protecção dos autores do crime que queiram colaborar, o que é inequívoco sinal de que encoraja a sua colaboração. Sim, com o voto de Portugal.

Nas nossas leis penais, há mais de duas dezenas de situações em que se prevê a atenuação especial da pena se o agente do crime impedir o resultado da sua conduta criminosa ou reparar os seus danos, todas elas manifestações do direito premial.

Em crimes como os de terrorismo, associação criminosa, branqueamento de capitais ou de corrupção, o que se exige ao arguido para que beneficie dessa atenuação especial da pena é mesmo que auxilie concretamente na obtenção ou produção das provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis. Em algumas situações limite, a lei prevê até a possibilidade de dispensa de pena, o que poderá levar ao arquivamento do inquérito, deixando o “agente colaborador” de ser julgado, ou, sendo julgado, que não sofra qualquer pena.

Posto isto, perguntará o leitor: com todas essas leis existentes, o que se quer mais? A resposta é simples: algo que verdadeiramente funcione, pois o que existe é absolutamente ineficiente. Não dando àquele que quer colaborar no início da investigação (onde verdadeiramente interessa, pois sem ele nem se chegará a julgamento) qualquer garantia sobre se vai ou não beneficiar de atenuação especial da pena ou até da sua dispensa, não haverá colaborações. E não há mesmo.

É por isso que aí algo deve ser mudado. Criando um só regime deste meio especial de obtenção de prova, em lei própria que regule toda a tramitação e possíveis incidentes; que restrinja o seu âmbito a alguns tipos de crime (criminalidade organizada e económico-financeira); garantindo que o arguido colabora de forma espontânea, livre e esclarecida, sempre assistido por advogado; assegurando que não se trata de mera denúncia, mas efectiva colaboração na aquisição de provas, no impedimento de consequências do crime ou na recuperação de activos; ficando claro qual a dimensão da colaboração a que o agente do crime se compromete e qual para o concreto benefício que terá; sendo o acordo homologado pelo juiz de instrução, em diligência por si presidida; impedindo que a condenação assente exclusivamente nas declarações do agente colaborador.

Isso é algo incompatível com os princípios do nosso sistema jurídico? Manifestamente, não. Viola a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, como temos ouvido? De modo algum. Basta conhecer a sua jurisprudência sobre processo equitativo, nomeadamente sobre declarações de co-arguido e limites sobre o “direito ao silêncio” (em especial, o caso Jonh Murray v. Reino Unido). Apresenta a colaboração de agentes do crime questões delicadas de compatibilização prática de direitos fundamentais? Claro. Mas não acontece o mesmo com muitos dos meios de obtenção de prova há muito previstos na nossa lei (buscas, escutas, agentes encobertos, etc.)?

Ouve-se, com frequência, que este instituto não é da “nossa tradição”. Todos sabemos que a “nossa tradição” era perseguir criminalmente apenas os pilha-galinhas, não incomodando os “senhores de bem” das cúpulas dos poderes político, financeiro e económico. Para escândalo de muitos, muito já mudou. Mas muito mais há ainda a mudar.

Tendo nós, como todos os países, um problema grave de criminalidade organizada e económico-financeira, temos um sistema perfeito para a sua prevenção e repressão? Não.

Não se pode, por isso, aceitar que, prematuramente, se recuse o debate público sobre a matéria. Um Governo que “constata que as ameaças e os riscos à segurança são cada vez mais globais, diversificados, complexos e sofisticados. É o que se passa com o tráfico de pessoas, de armas e de droga, o terrorismo, o cibercrime e a moderna criminalidade económico-financeira” (Programa de Governo, p. 55), que solenemente proclama que pretende o “esclarecimento célere do crime grave e organizado, em particular do terrorismo, da cibercriminalidade, dos crimes contra a autodeterminação sexual e da criminalidade económico-financeira, em particular da corrupção” (p. 60), não pode deixar de o fazer. É que, até agora, nada fez para isso.

Quanto aos partidos que têm recusado o debate, o que se espera é que, com objectividade e sem preconceitos, nele participem. Se o não fizerem, então que, coerentemente e sem cinismos, apresentem iniciativas legislativas para desobrigar Portugal das duas referidas convenções e para eliminar da lei todas as muitas manifestações de colaboração premiada existentes. Os portugueses estão fartos de faz-de-conta.

Procurador da República, ex-Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público