Na sequência da publicação do PISA 2018, cujos principais resultados analisei aqui, houve um indicador que intrigou toda a gente: os desempenhos médios dos alunos do ensino privado caíram a pique, abandonando os habituais níveis mais elevados e colocando-se ao patamar dos do ensino público. O resultado é intrigante porque contraria todos os indicadores comparados existentes sobre os níveis de desempenho dos alunos do ensino privado em Portugal (e um pouco por todo o mundo) — em função de um perfil socioeconómico mais elevado, que está correlacionado com os desempenhos escolares, é apenas expectável que os alunos do ensino privado tenham resultados escolares superiores à média nacional.

O que explicava esse resultado intrigante no PISA 2018? Um breve olhar sobre a caracterização da amostra referente aos alunos do ensino privado permitiu constatar algo inesperado: segundo o PISA 2018, o perfil socioeconómico dos alunos do ensino privado em Portugal baixou vertiginosamente, ao ponto de a percentagem de alunos desfavorecidos ter triplicado entre o PISA 2015 (10,8%) e o PISA 2018 (30,3%). Ora, na realidade do dia-a-dia das escolas, esse súbito empobrecimento não sucedeu. E não havendo qualquer acontecimento social ou económico que permitisse argumentar em defesa desse empobrecimento súbito, o cenário mais provável tornou-se a existência de algum erro ou alteração metodológica na construção da amostra do PISA 2018. Foi precisamente o que sugeri neste artigo, onde também assinalei a importância de o IAVE (a entidade que, em Portugal, coordena a implementação do PISA) vir a público esclarecer o que teria acontecido.

Infelizmente, o IAVE manteve-se em silêncio até à data. Mas, felizmente, houve mais quem considerasse o assunto relevante. Isabel Flores analisou a composição da amostra do PISA 2018 e, num artigo no Público, trouxe duas novas informações imprescindíveis para esta discussão.

A primeira é que, como se suspeitava, a composição da amostra dos alunos no privado do PISA 2018 é substancialmente diferente da do PISA 2015, com uma maior percentagem de alunos oriundos das vias profissionais (figura 1). Em 2015, os alunos nas vias gerais do ensino privado (66%) e nos contratos de associação (13%) somavam 79% do total da amostra, com 21% dos alunos em vias profissionais ou vocacionais. Ora, em 2018, tudo foi muito diferente: os alunos nas vias profissionais somavam 51% (40% no profissional e 11% nos Cursos de Educação e Formação – CEF), enquanto os alunos nas vias gerais ficaram reduzidos a 49% (dos quais 12% são alunos de colégios com contratos de associação, a única parte que se mantém estável nas duas amostras). A composição das amostras é estruturalmente diferente e assim, com maior presença de alunos das vias profissionais, fica explicada a descida dos desempenhos médios.

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A segunda informação que Isabel Flores trouxe foi que os alunos do ensino privado mantiveram os seus níveis de desempenho entre 2015 e 2018. Ou seja, os alunos das vias gerais do privado tiveram resultados semelhantes entre as duas edições do PISA, assim como os dos contratos de associação e os das vias profissionais. Ou seja, não houve qualquer alteração relevante dos níveis de desempenho. Se a média geral dos privados diminuiu, isso deveu-se à nova composição da amostra, mas não a oscilações de performance dos alunos. Assim, caem por terra as teorias que, baseadas na média do PISA 2018, anunciaram a falência educativa do ensino privado (por exemplo esta, de Nuno Serra, que sugeria que a queda estivesse relacionada com um enfoque excessivo no “treino” para os exames).

Provada a alteração da composição da amostra dos privados no PISA 2018, coloca-se uma nova questão: essa alteração da composição da amostra resulta de um erro (ou “azar”) metodológico, ou espelha uma nova realidade do sector do ensino privado? Isabel Flores sugere que seja a segunda hipótese, por via de um recente ressurgimento dos cursos CEF e por haver cada vez mais alunos a optar pelas vias profissionais por escolha própria aos 15 anos (e não derivado de insucesso escolar nas vias gerais). Ou seja, Isabel Flores sugere que, nesta nova realidade, o “ensino privado em Portugal passou a servir populações provenientes de estatutos socioeconómicos muito baixos” e por isso com maiores índices de insucesso – o que explicaria a mudança na amostra do PISA 2018 e os piores desempenhos comparativamente a edições anteriores.

Eu discordo de Isabel Flores nesta conclusão e, pelo contrário, proponho que a explicação correcta esteja mesmo na metodologia. Isto porque a “nova realidade” que a investigadora aponta para o ensino privado não existe nos dados das matrículas do Ministério da Educação (DGEEC). Ou seja, como tentarei demonstrar abaixo, os dados das matrículas no ensino privado dos alunos de 15 anos, entre 2015 e 2018, não apresentam qualquer alteração estrutural relevante, muito menos ainda algo próximo da proporção do que mudou na amostra do PISA 2018.

Vamos aos dados. Descobrir que escola frequentam os alunos de 15 anos não é uma tarefa linear. Os dados publicados pela DGEEC, nomeadamente nos seus relatórios estatísticos anuais do “Perfil do Aluno”, não apresentam essa informação detalhada entre sectores público e privado. Mas, com alguns cálculos, é possível estimar e obter resultados que ficarão muito próximos da realidade. O que fiz foi, para cada opção (vias gerais do ensino básico e secundário, vias profissionais no básico e secundário), obter a proporção de alunos de 15 anos matriculados sobre o total de alunos matriculados (todas as idades) e, posteriormente, multiplicar essa proporção ao total de alunos no privado em cada uma dessas opções. Os valores obtidos são, por definição, aproximados, mas estarão muito próximos dos oficiais. E, como se vê na figura 2 e abaixo explico, os resultados são esclarecedores.

Entre 2015 e 2018, a percentagem de alunos de 15 anos matriculados em colégios privados nas vias gerais aumentou (de 34% para 39%). Este aumento deve-se, em grande medida, à entrada de alguns alunos que frequentavam colégios que perderam os contratos de associação. A diminuição da percentagem de alunos matriculados em escolas com contrato de associação (de 28% para 19%) foi a maior oscilação neste período. Nas vias profissionais e vocacionais (incluindo CEF e Cursos Tecnológicos), as diferenças são menores do que se poderia supor. No profissional/ vocacional até diminuiu, pois passou de 31,5% para 28%. Porquê? Porque embora se “ganhem” 600 alunos no nível secundário, “perdem-se” 1300 alunos no vocacional do ensino básico, que entretanto foi extinto. Curiosamente, é nos CEF que um número similar de alunos surge (1400 alunos), o que parece praticamente uma transferência directa entre o antigo vocacional e os “novos” CEF. Finalmente, nos Cursos Tecnológicos a diferença é irrelevante (menos 0,5%).

Traduzindo tudo isto, o que se vê nas matrículas é o seguinte: no total do ensino privado, a percentagem de alunos nas vias gerais (privado e contratos de associação) passou de 62,3% do total (em 2015) para 58,2% (em 2018), enquanto nas vias profissionais passou de 37,6% (em 2015) para 41,7% (em 2018). Ou seja, não se observa qualquer alteração brusca nas matrículas do ensino privado neste período que justifique alterações profundas na amostra do PISA 2018.

Aliás, se compararmos a realidade das matrículas com as amostras dos PISA 2015 e 2018, outras incongruências surgem. Por exemplo, se a amostra do PISA 2018 efectivamente pretende reflectir a realidade das matrículas, como explicar o caso dos alunos inscritos nos colégios com contratos de associação, que diminuíram fortemente desde então, embora isso não apareça na amostra, que mantém estável o peso percentual dos alunos matriculados nesses colégios? Outra incongruência: como explicar que as vias profissionais sejam maioritárias na amostra do PISA 2018 quando, na realidade das matrículas, nunca o foram e continuam longe de o ser?

Uma terceira incongruência é mais complexa, mas fundamental para a compreensão do problema: não é só a amostra do PISA 2018 que tem divergências face às matrículas de 2018 (porque sobrevaloriza a oferta profissional), também há divergências na amostra do PISA 2015 face às matrículas de 2015 (que sobrevaloriza as vias gerais). Acontece que há boas razões para isso: sobrevalorizar (dentro do razoável) as vias gerais do ensino privado na amostra do PISA garante a comparabilidade dos resultados entre sectores público e privado. Repare-se que, na amostra nacional do PISA 2018, 84% dos alunos estão nas vias gerais e só 16% nas vias profissionais. No PISA 2015, foram 87% e 13%, respectivamente. Ou seja, se a composição da amostra do ensino privado no PISA for maioritariamente composta por alunos das vias profissionais (51%) e a do público apenas tiver uma pequena minoria de alunos destas ofertas educativas, inviabiliza-se a comparação de resultados entre sectores público e privado. De resto, o que aconteceu neste PISA 2018 demonstra-o: a comparação entre os resultados dos sectores privado e público gera mais equívocos do que promove esclarecimentos.

Dir-me-ão que, na sua amostra para Portugal, o PISA deve assegurar a representatividade dos alunos portugueses como um todo, mas não forçosamente dos alunos do público e dos alunos do privado. É um argumento possível. Mas se assim for, então tem de ficar claro que a amostra referente ao ensino privado não representa o ensino privado (i.e. é praticamente inútil) e que são inválidas as comparações entre desempenhos de alunos no público e no privado dentro do PISA. Não foi o que aconteceu. Pelo contrário: no seu relatório de apresentação de resultados do PISA 2018, o próprio IAVE compara sucessivamente os alunos do público e do privado nos desempenhos e literacia a Leitura, Matemática e Ciência. Portanto, alguma coisa não bate certo.

Goste-se mais ou menos do que eles dizem, os dados são o que são. E, até ao momento, os dados excluem as explicações alternativas: tudo aponta no sentido de um erro metodológico no PISA 2018, que tornou a amostra portuguesa referente ao privado desligada dos números reais das matrículas e inviável para comparações com os alunos do sector público. Seria uma evidente mais-valia que o IAVE viesse esclarecer esta situação.