1- Grande despedida mas era preciso merecê-la. A herança de Mário Soares, justificava-o, há um legado seu que conta, marca e permanecerá e não me foi preciso votar nele para o reconhecer e querer conservá-lo. Houve quem se indignasse com as cerimónias fúnebres, a escolha dos Jerónimos (where else?), o aparato; quem desligasse as televisões ou despejasse ódio na sub-cave das redes sociais. A maioria porém, onde me incluo, apreciou a qualidade absolutamente invulgar da cerimónia, a sua substância, dignidade, sobriedade. Ouviram-se palavras pesadas de sentimento e significado político, evocou-se a história, o passado, navegadores e poetas, e falou-se no presente olhando para o futuro. Portugal estava ali e por momentos, reconciliado. Por obra, graça e exemplo de quem por duas vezes já reconciliara o país com ele próprio e os portugueses, uns com os outros: Mário Soares no final de 1975 e logo após ser eleito Presidente da República, em 1986, depois da tensa e densa campanha eleitoral que o opôs a Freitas do Amaral. Hoje dia 10 de Janeiro, já longe de nós mas afinal tão perto, voltava a fazê-lo.

Os que se indignaram, nunca quiseram perceber Mário Soares, tomando-o de ponta desde o início da revolução, fazendo dele o “único culpado” – da descolonização e dos retornados, por exemplo. Soares era o “civil” que congregava fúrias e desilusões, em quem era cómodo bater e “aliviante” desprezar. É certo que não fui escorraçada de África por portugueses a soldo da União Soviética ou soldados que voluntariamente não defendiam os seus, nem regressei de mãos vazias para um contentor rapidamente esquecido. Será por isso que quarenta anos depois, persisto em não confundir culpados? Também não amarguei a democracia nem ela me fez azia. E se fizesse, recorria àquilo que a acção (e a vocação) política de Mário Soares tinham posto à disposição dos portugueses: o precioso instrumento do voto, permitindo escolher novos inquilinos ou outras moradas partidárias. (E permitindo ao mesmo tempo dizer mal dele, Soares e em voz alta ou insultá-lo em paredes ou ecrãs.)

Isto dito, apreciei muitíssimo o Portugal democrático, adulto e digno que vi nos Jerónimos. Estaria lá bem e em paz comigo e com o país que lá estava, mesmo se não elegi e ainda menos escolhi nenhum dos seus mais altos representantes. Mas mais uma vez não se podem confundir as coisas: o facto de vivermos em democracia é muito superior ao facto de não coincidirmos politicamente com quem nos governa ou afectuosamente abençoa. O que conta, sim, é que depois desta maré política o meu voto poderá ajudar a vir outra, que na casa da democracia há muitas moradas.

Graças a Mário Soares, justamente: o voto e as moradas.

2 – Por estes dias fui vendo e ouvindo. E estranhando. Não há como conhecer as coisas, tê-las vivido ou escrito para ficar perplexo com a circulação de inverdades ou “parcialidades” promovida pela morte de Mário Soares. Mais que a “unanimidade enjoativa” como lhe chamou Henrique Raposo, houve intencionais desfocagens da realidade, esquecimentos oportunos, ajeitamentos do passado. Claro que não é de hoje a tentação de refazer a história e de a tornar (oportunisticamente) conveniente ao momento, mas calha que é hoje que eu vivo e por isso, hoje que me indigno. Por exemplo: foi muito lembrado pelas vozes empolgadas de pivôs e comentadores como Soares “era contra a troika” e como ele se opusera a austeridade. Não sei o que é mais grave: se dizer isto por não saber nada de nada de Soares, ou se, tendo conhecimento dos factos , preferir omiti-los “para o retrato”. Acontece que quem, pela primeira vez após Abril de 1974, apelou a uma intervenção estrangeira porque não havia um tostão em lado nenhum, foi Soares em 1978. Presidia então a um governo de coligação com o CDS e a troika nessa altura chamava-se FMI. Veio, ficou e foi duro. Anos depois, entre 1983/85, no governo do Bloco Central PS/ PSD, também chefiado por Soares, houve uma brutal austeridade. Com manifestações, greves, protestos, os sindicatos ululantes, o PC na rua, o Bispo de Setúbal rouco de tanto alertar contra “ a fome no seu distrito”. O país empobreceu e entristeceu. Mas Soares, igual a si mesmo, fez o costume: resistiu e não desistiu das medidas dessa austeridade que ele sabia indispensável. As Finanças endireitaram-se, as contas equilibraram-se. Está tudo nos arquivos já que se sumiu da memória de muitos.

Também nas revisões da matéria feitas por estes dias sobre a biografia do dr. Soares quase ninguém notou (porquê?) que ele projectou sempre o PS da esquerda para o centro esquerda, como quem elege convictamente um “lugar” político e se mantém fiel a ele, recusando casamentos radicais. Era assim que Soares entendia o lugar, a missão e a utilidade nacional do seu partido. Na Presidência da República não destoou e manteve-se um moderado (mesmo quando extrapolando funções produzia e realizava (inúteis) congressos contra o seu Primeiro Ministro) Mas o que interessa e o define – e é esse o meu ponto – é que enquanto teve responsabilidades públicas como chefe do governo ou de Estado, escolheu um determinado posicionamento para si e para o seu partido com o qual melhor entendia servir o país. Depois mudou, namorou a extrema esquerda e deixou- se cortejar por inimigos de ontem? É verdade mas fez mais pena que dano: quase não teve consequências, não influiu, não lhe assegurou o regresso a Belém, nem impressionou por ai além. E no entanto… julgo ter ouvido mais sobre este sombrio segundo Soares, do que sobre o excelente primeiro dr. Soares.
3 – E finalmente também se notou como alguns ,para melhor enaltecer Mário Soares tinham de insultar a direita ou de ressuscitar a sua rejeição quase paranóica de Passos Coelho ou de Cavaco. O primeiro ganhou as eleições há um ano após três anos de também brutal austeridade e o segundo foi o político com mais amplas maiorias em quarenta anos de contagem de votos.
4 – Estes dias também foram de Pedro Burmester. Em magnífica forma e especialmente inspirado tocou na Gulbenkian, afogado em aplausos num bem vindo regresso a Lisboa. Mas como o destino (ou seria Deus?) organiza bem as coisas, foram os dedos agilmente sôfregos de Burmester oferecendo-nos Beethoven e Bach que selaram esta jornada particular de 10 de Janeiro de 2017. Não por acaso e por isso me lembrei de Deus na penumbra imóvel da plateia: era difícil maior sintonia ou melhor traço de união entre o “som” da portugalidade ouvido de manhã nos Jerónimos e a deslumbrante sonata número 30, em Mi maior, opus 109, de Beethoven, tão bem tocada á noite, por Burmester.
5 – Portugal, 10 de Janeiro de 2017: um dia em que os seus principais protagonistas estiveram do lado certo das coisas.

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