Vamos falar de economia com “e” pequeno, isto é, o conjunto de mecanismos e não a “ciência” que a estuda e que se escreve, paradoxalmente, com “E” maiúsculo. E vamos andar por temas existenciais, mas relativamente fechados porque, seja qual for a nossa educação de base, acho que todos concordamos que esse conjunto de mecanismos só existe entre humanos. Eu sei do fantástico trabalho levado a cabo por não menos fantásticos sociólogos e economistas que mostram que, em várias sociedades de primatas, estes colaboram de forma mais ou menos inteligente para atingirem um objetivo. Vamos estabelecer que, pelo menos no âmbito desta leitura, isso não é economia. É cooperação. Economia passa-se quando temos um número não finito de necessidades (tanto quanto conseguimos perceber), cooperação passa-se quando satisfazemos um número finito de necessidades, tipicamente aquelas do nosso corpo biológico – alimentação, reprodução, sobrevivência, etc.

Daí a pergunta, porque é que existe uma economia? Podemos ser religiosos ao ponto de dizer que foi por vontade divina e que tais desígnios não são questionáveis. O que, como devem imaginar, a minha formação impede-me de aceitar tal, mas aceito que os mais religiosos fiquem por aqui. Assumindo que assim não é, sendo esse conjunto de mecanismos um produto biológico, ou seja, sendo o resultado da evolução das espécies por meios de seleção natural, qual o racional associado à existência de uma economia? Repare que não estou à procura da certeza absoluta, apenas de uma razão pela qual uma ligeira mutação genética faria que um hominídeo com economia se tornasse mais adaptado ao ambiente que o rodeia. Sabemos que, por exemplo, a reprodução sexuada tem vantagens face à assexuada porque fomenta a diversidade genética e, com esta, garante uma maior proteção contra as ameaças do ambiente e favorece a própria evolução. Foi por causa disso que apareceu a reprodução sexuada? Não, ela apareceu por mutação genética, mas o sucesso dessa mutação estará, plausivelmente, associado às razões que apontei. Então, o pequeno detalhe de deixar de ter apenas as necessidades biológicas para ter um número infinito de necessidades parece ser um fator importante no sucesso da espécie, atendendo ao domínio que tem sobre o planeta que ocupa e todo o meio ambiente que o rodeia.

A economia pode não ser algo “inscrito” na nossa codificação genética? Pode, acho que nunca ninguém provou que isso assim é. Mas não faz sentido que não seja, porque se assim fosse, as nossas sociedades seriam muito mais próximas dos primatas que aquilo que são, porque a questão está na satisfação das necessidades. Como esses estudos com primatas mostram, satisfeita a necessidade cessa a cooperação até que a necessidade surja de novo. Por exemplo, há experiências feitas com espécies de macacos que usam mecanismos em que um levanta uma alavanca que permite ao outro ir buscar comida para ambos. Mas assim que a comida é obtida e ambos satisfazem a fome, não voltam a cooperar até que a fome volte porque não há mais nenhuma necessidade. Por isso, a possibilidade de um instinto económico não fazer parte dos nossos instintos será reduzida, na minha opinião.

O que isto tem de importante é que a capacidade de haver um mago qualquer da Economia, mesmo que seja um Ronaldo, de alterar o fundamental do comportamento do sistema é muito limitada, senão impossível. Conseguirá efeitos temporários que se corrigirão mais à frente, mas aquilo que as instituições conseguem é melhorar o comportamento de cada um de nós nesse surgimento constante de novas necessidades. E isto não só é possível, como se tem mostrado muito eficiente, como educar as pessoas para que estejam prontas para as necessidades que ainda não existem e cuidar e proteger-lhes o corpo, para que as necessidades biológicas não superem as económicas. Mas é falso que existam políticas prescritivas que consigam, para além disto, mudar algo que está gravado naquilo que é a nossa existência enquanto seres humanos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Isto a propósito de um evento da FFMS sobre desigualdade. A diferença entre economia e cooperação não é só um detalhe biológico plausível (enfatizando que ninguém ainda provou que economia é um instinto). Essa diferença tem consequências enormes na física e na matemática associada aos dois sistemas. Na cooperação, como as necessidades são finitas, as configurações possíveis do sistema, podendo ser muitas, são sempre as mesmas. Diz-se que o sistema está em equilíbrio. É neste sistema que se aplica toda a matemática que está habituado a ouvir relativamente a economias. Desde estatísticas e projeções, até processos estocásticos e inteligência artificial, essa é a matemática que se aplica a sistemas como a cooperação. Ou seja, sistemas bem-comportados em que o numero das configurações possíveis não se altera, por muito grande que seja esse número. É por isso que os físicos fazem tudo para isolar os sistemas que estudam, montando maquinaria caríssima. Para que as configurações possíveis não se alterem durante o estudo do sistema.

Num sistema como a economia, nada disso se aplica. Pelos menos diretamente. O facto de as necessidades serem infinitas faz com que o sistema esteja sempre a crescer. Em inflação, diz-se. Eu sei que a ideia que tem é que a inflação resulta da impressão de dinheiro. É mentira, na verdade é o contrário. A impressão de dinheiro é que deveria resultar da inflação, isto é, do crescimento do sistema. Mas se imprimir sem o sistema crescer, naturalmente está a fazer o sistema crescer de forma aparente, apenas em termos numéricos, não em termos físicos. Como nos habituámos a escrever tudo na economia em unidades monetárias, se imprimirmos dinheiro sem o sistema crescer, o movimento faz-se de forma aparente face ao referencial das unidades monetárias, mas não está a crescer na realidade.

Se imaginarmos a pessoa mais rica do universo, se imprimirmos dinheiro sem o sistema crescer, a riqueza dela vai valer mais euros, mas, como o sistema não cresceu, ela não saiu do “mesmo sítio”. Nem a pessoa mais rica, nem a mais pobre. A distancia relativa entre ambas não mudou, apenas mudou o referencial em que a medimos. Pensem num lápis. Primeiro meço em polegadas e digo que mede 3.94. Depois meço em centímetros e digo que mede 10. Obviamente, o lápis mede a mesma coisa, o que muda é o referencial, ou as unidades, se preferirem.

Mas como a economia é um sistema que está sempre a crescer, o lápis está sempre a crescer também. A distância entre o mais rico e o mais pobre está sempre, sempre, a crescer. Não é um defeito do sistema, é feitio. É assim. E à medida que vai crescendo, imprime-se mais dinheiro para representar esse crescimento e as unidades, leia-se o valor do dinheiro, vão mudando com o tempo.

A explicação é algo abstrata e, nalguns pontos, difícil de entrar porque contraria muitas das nossas crenças. Talvez por isso tenhamos pessoas, de ilustríssimo currículo, se confiarmos nas notícias, nesse evento da FFMS a defender a existência de um rendimento mínimo universal. E, sem recorrer a meios termos, a ideia é, obviamente, um disparate. Porque o que aconteceria é que mudaríamos as unidades, não faríamos crescer o sistema. O valor desse rendimento mínimo universal passaria a ser o valor pelo qual se compraria zero horas de trabalho, se adquiria zero de capital. O tamanho do lápis, vamos chamar assim, continuaria a crescer, independentemente das unidades com que se mede esse tamanho.

O que deve estar sempre em causa é quão mais pobre é o mais pobre, atendendo que o feitio do sistema não vai mudar. Se olharmos para a nossa história em que 25% das pessoas não iam à escola no tempo dos meus pais e se morria de cólera e sarampo na escola onde fiz a preparatória, digamos que os pobres hoje são bastante mais ricos que os pobres de antigamente. Os ricos também são mais ricos, mas isso vem do feitio. E, note-se, ninguém teve um rendimento universal. Mas teve um capital mínimo atribuído. Foi dada educação a todos, embora mais a uns que a outros. Foi dada saúde universal, embora uns recebam para ter cuidados privados e outros serviços mínimos. A todos foi dada segurança e paz, embora uns vivam num bairro melhor que os outros. E, sem grande esforço, se chega à conclusão que ter pobres mais ricos depende, em primeira mão, deste capital mínimo, ainda que seja garantido que vamos também ter ricos mais ricos.

Em vez de andarmos preocupados com algo que não vai mudar e até vai aumentar – a desigualdade – devíamos defender os mais fracos tentando, ao máximo, melhorar esse capital mínimo. Dar-lhes as melhores escolas, os melhores hospitais e a melhor segurança. Não é dar os melhores hospitais aos funcionários do estado, fazer as crianças andar nas escolas que convêm ao sindicato dos professores ou usar a polícia a fazer de sinaleiro nos cruzamentos de Lisboa, só porque as obras que fizemos são uma aberração de engenharia. Em rigor, aquilo que é o capital mínimo nem sequer precisa de muito dinheiro, só de boas pessoas. E repare-se como, ainda assim, os pobres de hoje são tão mais ricos que os pobres de ontem.

Como mensagem para levar para casa, pergunte-se a si mesmo: porque é que existe uma economia? Se for um sociólogo de ilustre e comprido currículo, mal não lhe fará. Normalmente, o porquê da existência das coisas encerra boa parte da explicação dos mecanismos subjacentes e, com ela, vem a razão de não se ouvir qualquer disparate como erudição. Incluindo este texto, naturalmente. Soubéssemos nós porque existe o universo e já não tínhamos físicos…

PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer