Eu sei que a questão pode parecer pueril ou coisas ainda piores, mas às vezes convém correr o risco de uma certa ingenuidade. Porque é que, em situações políticas em que a decisão parece fácil e o número de bons argumentos em favor de uma opção aparenta ser respeitável, ou mais do que isso, muita gente, e às vezes a maioria, opta pela decisão com menos e piores argumentos a seu favor? Há muitas situações assim, embora não sejam, com toda a probabilidade, as mais habituais. A questão pode, de facto, padecer de alguma ingenuidade, mas não é certamente ociosa.

Claro que desde Platão vários génios, espíritos laboriosos e pessoas comuns produziram incalculáveis soluções teóricas para o problema. E, como de costume, há acerto aqui e ali. Duas teorias dominam o panorama. A primeira, que comporta múltiplas versões, é a de que o erro (chamemos-lhe assim) é fruto da ignorância. De Platão ao marxismo (o “ópio do povo”, a “ideologia”, etc.), a tese sempre gozou de muitos adeptos. A segunda diz-nos que as questões políticas não são, pura e simplesmente, susceptíveis de apreciações deste tipo. De outra maneira: a questão encontra-se mal colocada, não é legítimo falar, em matéria de decisões políticas, de verdade e de erro. A questão não é de ignorância. Protágoras dizia que a arte política pertence a todos (não há especialistas, decisores profissionais da justeza política) e Weber falava da “guerra dos deuses” a propósito do conflito dos valores políticos.

A opinião erudita, embora não, por razões óbvias, a política militante, inclina-se, hoje em dia, para a segunda doutrina. E é verdade que, em tese geral, ela parece mais apreciável. Sobretudo se partilharmos uma visão fortemente idealizada da democracia grega, como aquela que é apresentada por Hannah Arendt. A primazia deveria ser concedida ao próprio conflito. E não é preciso sequer ver o mundo político com os olhos muito particulares de Arendt. As concepções liberais da democracia, como a de Popper, partilham, em geral, a mesma atitude, embora com heroísmos mais discretos.

Pode-se até, muito legitimamente, ir mais longe, bastante mais longe, e dizer que cada sociedade cria para si um mundo imaginário, dotado de significações particulares, que é irredutível aos mundos que outras sociedades criam. A palavra “criação” é aqui fundamental. E encontramo-nos mais longe do que nunca de toda e qualquer questão relativa à verdade e ao erro. A antropologia e a história parecem mesmo validar a tese. O filósofo Cornelius Castoriadis procurou longamente mostrar isso, bem como o convívio entre o sublime e o horror em cada uma das criações sociais. Por mim, parece-me eminentemente convincente.

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Mas, por mais que a tese da primazia do conflito em política, em qualquer das suas versões, contenha em si um elemento de verdade, e por mais que, filosoficamente falando, a irredutibilidade de qualquer criação social seja da ordem do factual, há problemas inerentes a este tipo de posições que competem com os problemas colocados pelas teorias que afirmam a legitimidade de falar de verdade e erro, em termos absolutos, em matérias políticas. O que se diz das matérias políticas pode-se dizer, quase sem variações, das matérias éticas. O que não tem que surpreender. A ética, Aristóteles lembrou-o, é uma província da política.

Os problemas são de dois tipos. Um mais geral, outro mais particular. O problema geral, bem conhecido, é o seguinte. A tendência para a exigência de universalidade é uma tendência praticamente compulsiva. A nossa cabeça não pode, não consegue, ignorar isso. E isso vai directamente contra a aceitação da irredutibilidade das criações sociais. Ou melhor: a aceitação factual desta última, mesmo quando se verifica, recusa desdobrar-se numa aceitação de direito. O desejo de uma boa sociedade (e de uma ética justa) contém em si aspirações universalistas que dificilmente são negociáveis. Do mesmo modo, os participantes no conflito político não podem abdicar de um sentimento de justeza da sua posição relativamente à dos demais. Nem haveria conflito se não fosse assim, excluindo, obviamente, os casos de posições ditadas pelo puro interesse pessoal ou corporativo, que, mesmo que muitas, não absorvem em si a totalidade dos comportamentos políticos.

O problema particular é diferente, embora ofereça traços comuns com o problema geral. Num contexto social e histórico particular, é difícil não recorrer às noções de verdade e erro em política. E isso mesmo que se aceite que tais noções só imperfeitamente se adequam a este domínio. Tomemos um exemplo. Imaginemos uma sociedade que se encontra a lutar pela sua sobrevivência enquanto comunidade estável e com um determinado grau de coesão. Os problemas que a ameaçam podem ser de diverso tipo, não interessa aqui quais. Basta pensar que eles funcionam como constrangimentos fortes com os quais ela tem de lidar. E imaginemos, suplementarmente, que esses problemas têm soluções, mais perfeitas ou mais imperfeitas, porque pode perfeitamente acontecer que não haja soluções, muitas vezes não há, e nesse caso a questão não se coloca. Essa sociedade tem à sua frente várias escolhas. Algumas delas conduzem-na, palpavelmente, à catástrofe ou a situações eminentemente indesejáveis. O conhecimento de certos dados inequívocos (na medida em que a inequivocidade é aqui possível) indica-nos claramente que é assim. Em contrapartida, a opção por um certo tipo de medidas permite, se não a solução perfeita dos seus problemas, pelo menos um arranjo que evite o pior e que dê a essa sociedade a esperança justificada de uma melhoria. Como evitar falar aqui de verdade e de erro nas decisões que se tomam?

Pode-se agora voltar ao princípio. Há muitos casos em que as decisões tomadas são decisões fundadas nos piores argumentos, em argumentos errados. As pessoas, no momento de votar, crêem, ou comportam-se como se acreditassem, em argumentos errados. Porque é que as pessoas escolhem erradamente, partindo do princípio que se pode falar aqui com sentido de verdade e erro? As explicações técnicas oferecidas por psicólogos e politólogos são muitas. Mas, em última análise, é verosímil que todas elas reenviem à passionalidade inerente às decisões políticas, uma passionalidade que por sua vez se encontra na dependência da tal carga imaginária própria a cada sociedade de que falava Castoriadis e que nos leva a a buscar sentidos particulares e satisfações particulares desses sentidos, que por definição se encontram para além da verdade e do erro. Esta carga imaginária é suficientemente forte para permitir cegueiras e recusas voluntárias na utilização da informação disponível e da racionalidade que certas situações permitem e aconselham.

Seja, como for, é legítimo falar de verdade e erro em relação a certas decisões políticas, mesmo que os conceitos devam ser parcialmente reformulados para se adaptarem a este domínio específico. A verdade e o erro não decorrem aqui de demonstrações mas da qualidade dos argumentos. Como, de resto, o universalismo ético e político, por muitas e poderosas objecções que se coloquem no seu caminho, é igualmente defensável. Nascido em contextos sociais e históricos particulares, ele ficará (tal como a verdade e o erro nas decisões políticas, embora por razões diferentes) sempre refém das suas origens. E terá de se apoiar (mais uma vez como a verdade e o erro nas decisões políticas) numa pressuposição: a da continuidade da experiência humana. Ela marca a nossa percepção do nascimento, da vida e da morte e não é nunca por inteiro recalcável. Não é certamente possível produzir uma demonstração universalmente aceite do carácter monstruoso da sociedade desejada pelo Estado Islâmico (se fosse possível, não existiria Estado Islâmico), tal como não é possível produzir idêntica demonstração relativamente aos erros, mais ou menos catastróficos, de certas decisões políticas (se fosse, o grau de racionalidade do voto seria bem maior). Mas a ausência de demonstrações em boa e devida forma não equivale à inexistência de bons argumentos. Por isso, a cegueira irracional continua a causar, consoante os casos, horror ou surpresa.