A Constituição da República Portuguesa actualmente em vigor não é certamente o único problema do país, mas ignorar que o enquadramento constitucional herdado do período revolucionário é um factor de bloqueio e um instrumento de tutela do regime pela esquerda é um erro sério. Mesmo após o levantamento de algumas das mais aberrantes provisões constitucionais impostas ao país em 1976, Portugal continua a ter a sua vida política, económica e social pautada por um enquadramento constitucional estatizante e ideologicamente enviesado no sentido do socialismo. Um enquadramento que, além de limitar gravemente a liberdade dos portugueses, funciona como um omnipresente factor de controlo e condicionamento da governação pelas forças e interesses mais estatistas.

Um condicionamento que aliás se alarga ao entendimento que as mesmas forças e interesses fazem do papel da Presidência da República no actual enquadramento constitucional. Como muito bem explicou Manuel Braga da Cruz:

“Ficou a compreender-se melhor o sentido original do poder de demissão do governo, atribuído ao Presidente da República, vertido por influência do MFA posteriormente na Constituição, em 1976. O rumo ao socialismo, que o preâmbulo da Constituição consagra, devia fazer-se democraticamente. Podia, porém, a democracia possibilitar a escolha de governos não socialistas. Lá estaria o Presidente da República para corrigir o rumo, demitindo esse governo. O que não se admitia é que o Presidente da República não prosseguisse, também ele, esse rumo.”

Em 1976, os deputados do CDS foram os únicos a votar contra o novo texto constitucional, mas a actual liderança do partido não tem, infelizmente, sabido estar à altura desse legado de lucidez e coragem. Relativamente ao PSD, é de louvar o aparecimento periódico de vozes que defendem a necessidade de um novo enquadramento constitucional, mas as iniciativas associadas têm sido erráticas e inconsistentes.

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É justo recordar que os graves enviesamentos da Constituição de 1976 foram em parte o resultado da complexa situação da época e das fortes pressões sobre a Assembleia Constituinte, numa altura em que a própria democracia liberal esteve em causa e a ameaça do totalitarismo comunista era bem próxima e real. Mas não é menos verdade que, não obstante as várias revisões subsequentes, o pendor estatista e anti-pluralista do texto constitucional se manteve em muitos aspectos inalterado. Neste contexto, a iniciativa do Observador de promover o debate sobre a Constituição merece ser especialmente saudada.

Ter uma “lei fundamental” que continua em muitos aspectos a corresponder a um programa ideológico de esquerda não é próprio de uma democracia pluralista e não serve os interesses do país. Uma Constituição no sentido próprio do termo deve procurar estabelecer as regras do jogo político sem tomar partido por nenhuma das partes envolvidas. As regras constitucionais devem idealmente estabelecer um quadro institucional merecedor de amplo consenso no âmbito do qual se possa desenvolver a actividade política corrente. É no plano da política corrente, e não no plano constitucional, que os diferentes programas de governação se devem confrontar. Para que isso aconteça, a Constituição não deve apontar para políticas concretas ou objectivos específicos da governação.

Lamentavelmente, o enquadramento constitucional português herdado de 1976, com a sua profusão de supostos “direitos” económicos, sociais e culturais e a prescrição de objectivos e formas específicas de organização em áreas como a educação ou a saúde, enviesa fortemente a política corrente e limita de forma injustificada as opções de governação. O que está em causa aqui, entenda-se, não é a defesa de uma Constituição que prescreva um modelo simétrico ao estatismo da versão actual, mas antes a defesa de um enquadramento constitucional menos dirigista, que permita reais possibilidades de escolha entre opções de governação (incluindo opções não estatistas) aos eleitores.

Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa