O pudor parece ter, por estes dias, má imprensa. A coisa vem talvez da sua confusão com a pudicícia, uma confusão que o português permite mas o latim não. A pudicícia tem uma natureza exclusivamente sexual, o pudor abarca o domínio político. Esta e várias outras coisas respeitantes às emoções sociais e políticas podem-se ler num maravilhoso livro (Emotion, Restraint and Community in Ancient Rome) do grande classicista americano Robert A. Kaster, um livro de que, sem grande pudor, me vou servir neste artigo. Propositadamente, uso os equivalentes portugueses mais imediatos das palavras latinas que Kaster comenta. O resultado é, pelo menos em dois casos, de estranheza. Mas talvez essa estranheza nos ajude a pensar alguma coisa sobre o pudor.

Isto porque uma coisa é certa e clara mesmo para a criatura menos propensa a moralismos que por aí ande: reina por estes dias, cá na terra, uma grande falta de pudor. E não, não estou a pensar particularmente em José Sócrates, que ciclicamente decide ascender ao universo visível com a sua repugnante linguagem de auto-vitimização agressiva, feita de “traições”, “vilezas”, “mesquinhezas” e “infâmias”: trata-se de alguém que, por todas as razões do mundo e mais uma ou duas, convém manter à maior distância mental possível. Estou a pensar, mais geralmente, nas outras figuras que quase diariamente, como pãezinhos, nos são servidas por jornais e televisões por causa da chamada “Operação Marquês”, e naquelas, por enquanto desconhecidas e aparentemente protegidas pelas forças que apoiam o governo, que se suspeita terem levado a Caixa Geral dos Depósitos à triste situação em que se encontra.

O que o cidadão comum sente face a estas notícias (com razão ou sem ela, mas provavelmente com razão) é que há gente que vive num mundo de invisibilidade e que se aproveita dessa invisibilidade para se abastecer abundantemente de dinheiro que nos cabe, no fim, pagar. Não é simpático. É um pouco como na história do anel de Giges que Platão nos conta. Um anel concede o poder mágico da invisibilidade e quem detém esse poder pode cometer toda a espécie de crimes sem ser nunca identificado. Em Platão, a história serve para discutir a questão de saber se o comportamento moral resulta unicamente do medo de sanções sociais (que o anel de Giges permitiria evitar) ou se, pelo contrário, é consequência de certos princípios que habitam a nossa alma e que são independentes da consideração das tais possíveis sanções. Em todo o caso, o pudor parece ser diferente do puro e simples medo. Ou, a haver relação, o medo, no pudor, será só o medo da vergonha resultante da descoberta das nossas acções e não das sanções daí resultantes. Mas essa discussão não interessa aqui. O que interessa é a convicção da invisibilidade que parece, de facto, fazer parte do mobiliário mental de muitas pessoas e lhes permite agir, seguras da sua impunidade, contra a lei.

Essa convicção não pode deixar de ser sentida pelo comum dos mortais como ofensiva. Até porque ela é no fundo afim da suposição da nossa não-existência. Não vemos, não ouvimos, não lemos, não sabemos: é como se não existíssemos. É isso que no fundo permite que os invisíveis mantenham a cara de pau impenitente com que os vemos, uma vez ou outra, na televisão. E não receiem, como se diz, perder a cara. E não corem, não desviem o olhar e não se calem. A comunidade dos invisíveis não é dada ao lamento e ao remorso, à penitência no sentido pré-cristão da palavra. Porque haveria de o ser, se a sociedade política para eles não existe fora dos estritos benefícios pessoais que dela podem obter?

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Inveja nossa, que no fundo gostaríamos de gozar do mesmo poder de invisibilidade? Não forçosamente, embora o latim, mais uma vez, pareça admitir a existência de uma boa e de uma má inveja, de um modo que o português não permite. A má inveja é aquela que eu tenho relativamente a alguém por esse alguém, pura e simplesmente, possuir certos bens. A boa inveja, a inveja justa, pelo contrário, dirige-se a alguém que usa bens que são de outros ou cuja posse resulta da violação de algum princípio da sociedade. É esta última inveja que podemos legitimamente ter em relação à comunidade dos invisíveis. Claro que “inveja”, em português, é uma palavra que se encontra irremediavelmente afectada de negatividade e é difícil atribuir-lhe qualquer valor positivo. E seria terrivelmente artificial utilizar, para designar a “boa inveja”, a palavra “invídia”, que também existe em português. Resta que há uma indignação deste tipo que é uma emoção política legítima.

Não é a única emoção que convém. Outra, por exemplo, é uma forma de fastio, no sentido originário de aversão, um sentido que permanece em português. Não apenas o fastio, a aversão, que sentimos espontaneamente por algo que nos repugna ou nos provoca tédio, mas o fastio que resulta de uma deliberação e que marca uma apreciação reflectida e uma hierarquização das formas de comportamento. Parece um procedimento social perfeitamente correcto. A comunidade dos invisíveis deve ser publicamente posta no seu lugar. E isso mais através de um movimento da comunidade política no seu todo do que dos partidos políticos. Estes encontram-se já tão presos a um regime de oposição entre si que qualquer denúncia, qualquer tentativa de chegar à verdade, é fatalmente vista como uma forma ritual de litigação sem conteúdo substantivo. Em todo o caso, qualquer político daqueles que consideramos “hábeis”, isto é, destituídos de pudor, poderá sempre fazer com que apareça como tal. Kaster nota que esse problema já existia entre os romanos.

O pudor, e isso Aristóteles já o tinha dito de forma definitiva, supõe a educação política, e uma educação política baseada na imaginação prospectiva de situações que despertariam em nós o sentimento de vergonha. À falta de tal educação, não existe pudor. Ora, há sem dúvida muitas coisas que vale a pena discutir para procurar melhorar a nossa sociedade. Mas que tal começar por lidar com a questão do pudor e da vergonha? É que a pouca vergonha, nomeadamente a pouca vergonha dos invisíveis e dos hábeis, faz mesmo mal. A questão não é exclusivamente, nem sequer sobretudo, moral: é mesmo uma questão política.