Há um filósofo contemporâneo que aprecio muito, chamado Michael J. Sandel. Num tempo em que o diálogo político se está a contaminar de radicalismos, indignações e caricaturas, Sandel é um desses homens sensatos cujo espírito crítico recusa rótulos e que, entre a esquerda e a direita, vai trilhando um caminho autónomo, fazendo avisos e dizendo o que pensa.

No seu livro mais recente, publicado entre nós com o título O Que o Dinheiro Não Pode Comprar, Sandel desenvolve uma interessante reflexão sobre os limites morais dos mercados. Segundo ele, “um dos desenvolvimentos mais significativos dos nossos tempos” é o modo como os mercados, os seus valores e a sua lógica de funcionamento têm vindo a penetrar “em aspectos da vida tradicionalmente regidos por normas não mercantis”. O autor dá vários exemplos: na África do Sul, é possível pagar para caçar espécies em vias de extinção; em certos estados norte-americanos, os presos podem pagar para ter celas mais confortáveis; na Índia, muitas mulheres pagam as contas alugando o útero a casais ocidentais inférteis. A partir de hoje, pode acrescentar mais um. O Estado português aluga o Panteão Nacional para banquetes de empresários estrangeiros.

O caso tem tanto de insólito quanto de indigno. O Panteão é um símbolo nacional por excelência, um testemunho vivo da nossa memória colectiva, onde se encontram sepultados tantos dos heróis que forjaram o nosso País. A par dos panteões régios de Alcobaça, da Batalha, de São Vicente de Fora e dos Jerónimos, o Panteão Nacional preenche um centro nevrálgico da nossa identidade colectiva. Usá-lo como salão de festas não ofende apenas a memória de quem nele encontrou a morada derradeira. Ofende-nos a todos, porque é partir do princípio de que o património de um povo pode ser alugado ou vendido a retalho.

Sandel, que está longe de ser um socialista e reconhece os méritos da economia de mercado, explica que há certos domínios que devem estar vedados aos mecanismos mercantis. Justifica-o com duas razões muito concretas. Por um lado, preocupa-o a igualdade entre os cidadãos. Quantas mais coisas o dinheiro permitir comprar, mais importante se tornará a distribuição de rendimentos. Para minorar este desequilíbrio, Sandel não sugere uma redistribuição da riqueza. Propõe apenas que nem tudo esteja à venda, para que o dinheiro não seja o único critério de diferenciação entre as pessoas. Fazer festa ruidosa no local de sepultura dos heróis da Pátria deve ser igualmente proibido aos ricos e aos pobres.

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A segunda razão é mais complexa. Sandel argumenta que o mercado altera a natureza e o carácter dos bens. De facto, quando colocamos um bem à venda, não estamos apenas a atribuir-lhe um preço. Estamos a afirmar, mesmo que implicitamente, que é adequado tratá-lo como uma mercadoria transaccionável e que o seu valor pode ser medido em dinheiro. Porém, “algumas das coisas boas da vida são corrompidas ou degradadas quando convertidas em mercadorias”, porque expressam valores morais, políticos e identitários que o mercado não pode captar. Era, logicamente, o caso do Panteão.

No rescaldo da polémica, o mesmo Governo que primeiro autorizara o abuso desceu à praça pública e, a reboque das redes sociais, armou em brigada de protesto e desatou a distribuir tantas culpas e reprimendas quantas aquelas a que esperava escapar. Ao longo de todo o espectro político, foi brotando, com notas variáveis de contrição, a noção de que uma qualquer linha vermelha fora ultrapassada. Foi a linha de Sandel. Como era evidente, o Panteão não podia ser alugado. Porque há coisas que o dinheiro não pode comprar. A nossa identidade depende disso.

Estudante de ciência política, 21 anos