1. Pouco se deu por isso. As deslocações a Évora e os festejos de Soares quase taparam um facto político interessante, ocorrido há dias e em português, embora numa geografia mais longínqua, do outro lado do Atlântico. Falo do novo governo de Dilma, obviamente já referenciado entre nós ma non troppo. Pelo menos não como merecia ou impunha uma história política tão forte (ou será mais exemplar do que forte?) e ela começa, não por acaso, com um cavalheiro chamado Joaquim Levy.

Quem é Levy? É um cinquentão, engenheiro naval, doutorado em Economia pela Universidade de Chicago e fiscalista reputadíssimo. Trabalhou para o FMI, esteve Banco Central Europeu, foi secretário do Tesouro no Governo Lula, era director do Bradesco. Apesar do sorriso ameno e dos modos afáveis, pratica uma ortodoxia agressiva e usa mão de aço nas contas. Dilma viu-se obrigada a ir buscá-lo para salvar o Brasil, a partir do Ministério da Fazenda. Digo bem, “salvar”: o país afogava-se na ilusão do crescimento a crédito e tão forte era a ilusão que a hesitação inicial de Levy em aceitar o convite residia exclusivamente no medo de que a Presidente estivesse a anos luz das medidas que o estado das coisas reclamava.

O novo ministro da Fazenda, que fora conselheiro económico do PSDB, partido de Aécio Neves, costumava repetir ao rival de Dilma Rousseff na corrida presidencial que não tropeçasse em promessas do foro económico e financeiro: nem durante a campanha nem sobretudo depois, se a ganhasse. Não ganhou mas Dilma bateu-lhe à porta. Precisava de mão e de chão debaixo das contas públicas, tal o desvario em que o seu governo as tinha deixado.

Há outros nomes do novo executivo da presidente que casam bem com a, digamos, escola de Joaquim Levy, mas mesmo que não houvesse, o próprio Levy se encarregaria de não deixar desafinar o coro ministerial na prioridade do controlo da despesa pública: a Fazenda já anunciou aos brasileiros uma mudança de cabo na orientação da política económica, mais a sua procissão de novidades amargas, a que Levy dá o mais prudente nome de “medidas necessárias”.

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Apanhadas de surpresa pela “austeridade” que subitamente entrou em cena, as mais assanhadas tropas do PT rangem os dentes e engolem impropérios. Nada que espante. Ou enfim, nada de muito novo: há histórias que se repetem, o Brasil está a começar uma saga que conhecemos de cor. Os meus amigos brasileiros com quem tenho dialogado nos últimos dias dividem-se porém sobre a origem do mal: começou com Lula ou foi o populismo imprevidente de Dilma – e a batota que fez na apresentação das contas – que causaram semelhantes rombos no navio almirante que é o Brasil?

Seja como for, o que aqui é novo é que… não há Alemanha. E como tal não se pode culpar Angela Merkel pela exigência de severas medidas de contenção, nem acusá-la de ser a má da fita pela simples razão de que o PT só pode bater o pé a si mesmo. Nem tão pouco haverá “Europa” para onde partir para reclamar renegociações de dívidas ou mimos semelhantes. A Alemanha de Dilma chama-se realidade e era aqui que eu queria chegar. À realidade das coisas serem como são. Ao peso dessa realidade na política, à sua função de encenadora e produtora de escolhas, caminhos e agendas governamentais.

 

2. Anda por aí uma discussão que divide espíritos e anima gentes sobre a “viragem à esquerda” do Partido Socialista, agora com Costa ao leme. Há os que a adivinham com mal contida ansiedade, os que a exorcizam porque francamente a temem, os que ironizam face ao absurdo de coligações governamentais de esquerda que nunca houve. É certo que o volume dos decibeis de esquerda aumentou para o triplo na voz de radicais empertigados que querem ser alguém, ou que o tom é por vezes épico na atabalhoada defesa de impossíveis.

Mas apesar de tal alarido não vaticino um caderno de encargos de esquerda numa governação socialista no caso (ainda duvidoso) de vitória legislativa daqui a dez meses. Não vaticino, nem antevejo. Não por “preferir” que o PS se alie à sua direita ou sequer por saber (vem nos compêndios de ciência política) que se António Costa se exibe hoje à esquerda, valsará velozmente para o centro quando chegarem as vindimas eleitorais, iniciando uma polca mais para o seu lado direito, caso venho a formar governo. Está inscrito na ordem das coisas, foi o que quase linearmente sucedeu entre nós, em 40 anos de vida política, com os governos do PS e é isso que vai ocorrendo com governos de “esquerda” por essa Europa fora e por esses “socialismos” dentro.

Não são porém valsas ou polcas que me ocupam agora: do que verdadeiramente se trata – ou irá tratar – é, uma vez mais, “da” realidade. Quem ganhar as eleições é com ela e segundo ela que terá de governar. Como está já a fazer a Presidente brasileira, mesmo que contrafeita e ainda surpresa.

Esta semana mesmo François Hollande (sempre ele) preparava-se para apresentar legislação que viesse a “agilizar” os despedimentos, o que não é dizer pouco. E na sempre evocada Itália já por mais de uma vez Renzi teve milhões de pessoas nas ruas reclamando contra medidas restritivas que ele nem anunciara, nem jamais tinham constado do seu programa político. Nem – pior – tinham sequer alguma vez passado pela cabeça dos militantes, simpatizantes e italianos em geral, que há meses tanto o incensaram. Esses mesmos que na rua vieram depois a esbarrar, contrafeitos ou furiosos, no muro da realidade.

Quem não se lembra de Renzi e Hollande genuinamente convictos, ambos, de que com eles no comando político, a agenda seria de esquerda, e todas as austeridades se esfumariam porque a Alemanha se convenceria a ser gentil para com eles? Depois, passo a passo, as coisas foram simplesmente o que a realidade (a que ainda vigora na União Europeia) mandou que fossem. Nem mais, nem menos.

Tal como Dilma, António Costa descobrirá que assim é. E por isso a questão não reside tanto no perceber com quem se aliará – que coligações ou gestos políticos fará –, mas em saber se, sim ou não, ele será capaz de governar com a contenção e os apertos que o outono de 2015 lhe impuser. Não parece porque nada o indica e sabe Deus com que ingredientes e cores estará pintado o próximo outono. No caso de Dilma Rousseff, as cores são sombrias: além da imposição vexatória que sofreu para que operasse uma vigorosa viragem governamental, o processo do “Petrolão”, em curso judicial no Brasil, não deixará de provocar danos fatais em governantes e políticos do PT. Ou seja, estamos conversados sobre o mau momento que vive hoje a esquerda no país dos nossos (supostos) irmãos.

 

3. Caim e Abel? Ou estarei a ser demasiada dura com um, demasiado bondosa com o outro?

Mas a sua exibição esta semana, à vez, ao vivo e em directo, não nos deve iludir. Nada disto é do domínio da moral como deveria ser, e um dia poderá ser que seja. De momento é sobretudo um combate impiedoso, implacável e pessoal, com as instituições políticas chamadas a intervir para explicitar, mas acudindo afinal, consciente ou insconscientemente, voluntária ou involuntariamente, a cada lado do confronto, através das suas primeiras e segundas figuras. E do grupo de representantes da nação, municiados de dossiers e zelo, onde também alguns deles por vezes nos surgem como possíveis pertenças dos exércitos de cada um dos ferozes protagonistas.

Seja qual for porém a caracterização com que se tente definir esta história, uma pergunta ficará para sempre a pairar no ar do nosso tempo: como foi possível chegar até aqui? À realidade que tudo isto configura e tão despudoradamente, desgostantemente, expõe?