Às vezes, faz bem recuar a tempos longínquos, ou não tão longínquos assim, e lembrar o que, no passado, acreditávamos sobre várias matérias. É bom para perceber que continuidades e descontinuidades nos fazem ser o que somos no presente, e, vá lá, para fazer um pouco de sentido da nossa vida. Há crenças passadas nossas com que nos damos melhor do que com outras. Mas, mesmo com as mais incómodas descontinuidades da vida, que gostam de se fazer sentir, deve ser possível encontrar um meio de ligar as crenças presentes às crenças passadas que tivemos e que retrospectivamente nos desagradam.

Crenças sobre o que é o mundo, o que é real, por exemplo. Bem gostaria de ser um físico ou um biólogo, por exemplo, para fazer um balanço deste tipo, comparando o que se sabia do universo e da vida há, digamos, trinta anos, e o que se sabe agora e porque teria acreditado em hipóteses que hoje me pareceriam improváveis. Mas a filosofia não permite verdadeiramente balanços deste tipo, a não ser que se queira incorrer no ridículo da “história das minhas ideias filosóficas”, um género que deve ser estritamente reservado a quem tenha tido ideias filosóficas públicas e notórias e que a grossa maioria dos personagens obscuros deve evidentemente evitar.

De qualquer maneira, e sem violar esta regra de ouro, há uma coisa ou outra que se pode dizer. Quando era novo, como quase toda a gente, suponho, era mais taxativo nas minhas crenças, um testemunho inequívoco de ignorância. Acreditava na existência de boas (certas) e de más (erradas) filosofias, mesmo entre as mais celebradas. Com a idade, e um pouco mais de ilustração, passei a ver as coisas de um modo sensivelmente diferente. Há certamente boa e má filosofia, mas entre a boa filosofia há lugar para muitas posições diversas. Escolho o mais fácil dos exemplos. Dantes, Hegel dizia a verdade. Depois, Popper dizia a verdade. Hoje, Hegel e Popper acertam, cada um à sua maneira, em coisas diferentes. Dantes, a especulação e a análise opunham-se. O que, numa fase, fazia sentido, passava, na fase seguinte, a ser puro sem-sentido. Hoje – e “hoje”, felizmente, dura há já muito tempo – a especulação é boa desde que use paraquedas, para evitar estatelamentos fatais. E a análise é boa, se permitir algum vôo.

Mas deixemos estas matérias, que tendem para o esotérico, e passemos às nossas crenças estéticas, que são coisa de que toda a gente tem, de um modo ou outro, experiência directa. Que pintura, que música, que poesia, que romances, que filmes, nos continuam a dar prazer? A relação entre as nossas crenças actuais e as crenças passadas varia, parece-me, nas diferentes artes. No que respeita à música, tirando a música pop da adolescência (e mesmo essa…), por razões que se prendem com a própria experiência musical, o prazer permanece quase idêntico no passado e no presente. Há, é claro, reavaliações. Há lieder de Schubert de que gostamos mais num tempo ou noutro. A música para piano de Schumann pode ganhar uma importância que antes não tinha. E por aí adiante. Mas há uma certa estabilidade que domina. E quase o mesmo se pode dizer da pintura, embora na pintura tudo dependa muito da nossa disponibilidade para visitar museus, que é o único verdadeiro modo de exercitar a visão e de repetir o prazer da contemplação. Num certo sentido, é ainda mais importante do que, para a música, assistir a concertos, por paradoxal que isso possa parecer.

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Nas artes da palavra começa a ser diferente. Na poesia, primeiro. A importância que damos a certos poetas pode diminuir. Embora a variação possa não ser muito relevante. No meu caso pessoal, quando descobri, por volta dos dezasseis anos, a poesia do romantismo inglês (tanto o primeiro – Wordsworth, Coleridge – como o segundo – Keats, Shelley, Byron), fiquei maravilhado. E continuo, embora certamente os leia menos. Mesmo em relação a um poeta português que por essa mesma altura lia com um entusiasmo que hoje me é alheio e copiava até onde podia, e mesmo para além disso, Nuno Júdice, compreendo ainda, quando releio a poesia dele dessa altura (anos setenta do século passado), as razões porque gostava, e elas não me parecem perfeitamente idiotas. Nos romances, já não é bem assim. Evito cuidadosamente reler Hemingway ou Roger Vailland. Não que tenha medo de descobrir absolutos erros na apreciação passada. Mas erros relativos, sim.

E no cinema, mais uma vez pela própria natureza da coisa, a inadequação dos critérios passados aos critérios presentes aumenta imenso. Não em todos os casos, é claro, mas em muitos. E os muitos chegam para mais do que um aviso. Não é preciso citar um exemplo radical: Godard. Basta referir um cineasta que se presta, por razões relativamente fáceis de explicar, a este exercício comparativo: Woody Allen. Claro que escapam a esta espécie de condenação os clássicos americanos, em primeiro lugar, alemães e japoneses, bem como algum cinema italiano (Fellini, por exemplo). Mas mesmo Woody Allen, tal como o insuportável Godard, podem-se, de uma certa maneira, explicar e compreender. Há uma continuidade ou outra que resiste.

E no que respeita à política? Trata-se talvez do domínio em que as crenças presentes e as crenças passadas, pelo menos para muita gente, se arriscam a divórcios mais completos, um facto abundantemente testemunhado pela vasta literatura produzida sobre a matéria. Mas também aqui as continuidades são possíveis. Um exemplo. Adolescente, sempre a maldita adolescência!, depois de ter lido o Manifesto comunista de Marx e de Engels (mais de Engels do que de Marx, se a minha memória é boa) e alguns outros textos dos dois, quem me tivesse negado a existência de um sentido da história, em direcção ao comunismo, era como se me tivesse negado a existência da mesa na qual escrevo. O delírio durou relativamente pouco tempo (nem um ano). Mas, admitindo o carácter estapafúrdio da crença, ela, mais uma vez, não me é inteiramente inexplicável, nem de uma radical incompatibilidade com o que penso hoje. O marxismo (o de Marx e de Engels), com toda a sua má filosofia pontuada de acertos aqui e ali, situa-se, com desvios vários, é verdade, na tradição do pensamento racional europeu, uma tradição que é de prezar. Claro que rapidamente a coisa evoluiu para um puro cant, um jargão sem correspondência com a realidade, e daí para a justificação dos mais criminosos dos regimes, mas isso é já uma outra história, mesmo que o marxismo propriamente dito não possa pretender a uma completa inocência no capítulo.

Conclusão? A revisão das nossas crenças passadas, mesmo que apenas para esclarecimento próprio, não é inútil. Pelo contrário. É importante saber quais das nossas crenças passadas nos sentimos obrigados a rever, que ligação existe entre as crenças revistas e as crenças presentes e que sentido fazemos das nossas crenças passadas, como lidamos nós com elas. Privadamente, isto serve para conversar com os nossos demónios, por mais insignificantes que estes sejam. E isso permite mantê-los no lugar que lhes é devido. Pública e politicamente, serve para evitar que, em tempos de incerteza, as crenças passadas das quais nos distanciámos regressem, sob uma forma regressiva e agressiva, como alucinações que se sobrepõem às nossas crenças presentes. Convenhamos que não é pouca coisa. Nesta vida cortada às fatias, a melhor maneira de evitar a possibilidade da regressão talvez seja, por paradoxal que pareça, buscar alguma coerência. A busca da coerência não deve, é claro, ser um valor máximo e irredutível. Não se trata de negar o peso das descontinuidades, das rupturas, em nós mesmos. Mas, em termos gerais, procurar a coerência parece meritório. Faz algum sentido, pode fazer sentido. E torna-nos, se tivermos sorte, um bocadinho menos estúpidos.