Tenho constatado que chegam a julgamento relatos de surpreendentes enredos criminosos cujos contornos mais “picantes” assentam, sobretudo, em prova testemunhal produzida em fase de investigação, sendo certo que, depois, no final de todas as contas, tais relatos se traduzem em pouco mais que nada.

Muitas vezes, acaba por se concluir ser assim – pasme-se – com base na mesmíssima prova testemunhal (ou melhor: com base na mesma testemunha!) que, tempos antes, oferecera indício relevante para a prolação da Acusação e que, com aqueles tais pormenores “picantes”, levou arguidos a julgamento.

Tenho ainda observado que a assinalada disparidade de depoimentos, proveniente do apuramento, em julgamento, da verdade material (o que é de salutar!), acaba por se poder traduzir num verdadeiro pesadelo para a testemunha que foi chamada a juízo para, sob juramento, voltar a relatar os factos em relação aos quais tem conhecimento direto.

Fala-se em “pesadelo” porque essa mesma testemunha, como “prémio” pelo seu “bom desempenho”, ganha a possibilidade de ver contra si instaurado, nem mais, nem menos, do que um processo-crime, o que não é de somenos importância, atentos os melindres que, do ponto de vista jurídico, social e financeiro, isso acarreta.

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Assim acontece, pura e simplesmente, porque, agora, diante do Tribunal, a testemunha disse a verdade, quando, antes, na fase de investigação, a testemunha ou não teve coragem para contrariar a forma como foi redigido o auto da sua inquirição, ou não se apercebeu das repercussões jurídicas que uma interpretação não rigorosa (e quiçá “interesseira”) do seu depoimento teria, ou, ainda, porque a testemunha se sentiu objeto de (na falta de melhor termo) “para-coação”.

Como bem se sabe, em inquérito, os depoimentos das testemunhas são escritos, em jeito de súmula, e as testemunhas assinam o mesmo, sinalizando, dessa forma, o acordo quanto ao relato então elaborado.

Ora, só quem nunca esteve numa inquirição deste tipo (o que não será certamente o caso dos advogados) é que não sabe como raras são as vezes em que um auto de inquirição sai imaculado após a sua primeira versão – ou porque o depoente não disse exatamente o que está escrito, ou porque o disse de forma menos perentória do que aquela que o texto reflete.

Sucede, porém, que, desconfortável e num clima de pressão, uma testemunha que seja chamada a depor diante das autoridades (aqui considerados o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal), na fase de investigação, dificilmente terá o à vontade suficiente para pedir, quantas vezes forem necessárias, para que a redação do auto relativo ao seu depoimento seja alterada. Inclusivamente, vezes há em que as testemunhas (mal) nem sequer leem o auto ou fazem-no, mas sem a devida atenção, num misto de irresponsabilidade e confiança cega em quem lavrou o referido resumo.

Mas a prática tem vindo a deixar bem claro que o paradigma mudou (ou que está em mudança) e que, por vezes, depois de formada uma determinada convicção de culpabilidade, ainda que sem provas suficientes para o efeito, o Ministério Público tende a seguir uma causa muito específica: a de acusar e a de defender essa opção.

Este desígnio acaba por se refletir, não poucas vezes, nos autos de inquirição de que se vem falando. O relato de uma afirmação perentória, quando na verdade, havia hesitações, ou uma opinião que foi efetivamente proferida, mas sem se referir a respetiva contextualização… Um sem número de características de um texto que, propositadamente ou não, acaba por poder dar margem a realidades diferentes daquela que a testemunha relatou.

Mas, bem mais grave do que isto, contam-se ainda os casos em que, em sede de inquérito, se deixa pairar no ar a possibilidade de a testemunha que se encontra a depor poder vir a ser constituída arguida – mensagem, expressa ou tácita, que, no fundo, surge em jeito de “condição suspensiva” cujos efeitos ficam dependentes da respetiva “prestação” no depoimento em curso.

É inequívoco: uma testemunha, nestas condições, está desprotegida e é permeável a pressões internas e externas – pressões estas que podem (não só, mas também) decorrer do próprio ambiente austero em que a sua inquirição decorre e que poderão fazer com que não se diga exatamente aquilo que se sabe ou que não se diga tudo aquilo que se sabe.

Ora, se considerada pertinente para a fundamentação da tese acusatória, a colaboração da testemunha com a justiça tende a perdurar. Com efeito, nessa hipótese, a testemunha volta a ser chamada, desta feita, a julgamento, para que a sua versão dos factos – já plasmada em auto de inquirição elaborado na fase de inquérito – seja “testada” até ao limite por um Tribunal independente, por um representante do Ministério Público diferente daquele que dirigiu o inquérito e por um ou vários Advogados que, prosseguindo diferentes (e as mais das vezes opostos) interesses, tudo farão para apurar, ao certo, o que a testemunha sabe sobre os factos em discussão.

É, pois, neste momento que se começa a conhecer as contradições no discurso da testemunha, a perceber as explicações que ficaram por dar, a conhecer as certezas que, afinal de contas, não são assim tão certas, a compreender os contextos que enquadram (e justificam) determinadas afirmações e que acabam por dar uma entoação bem diferente ao discurso da testemunha agora posta à prova… Em suma: é neste momento, na fase plenamente contraditória e participada que é o julgamento, que se percebem as falhas do auto de inquirição antes redigido, em fase de inquérito.

Em face de um cenário destes, e não poucas vezes, o representante do Ministério Público junto do Tribunal de julgamento lança da sua cartada: manda extrair certidão dos elementos do processo que contêm os depoimentos contraditórios da testemunha para eventual instauração de processo-crime contra a mesma pelo crime de falsidade de testemunho, previsto e punido no artigo 360.º do Código Penal.

E, a partir daqui, assiste-se a um volte-face para tantos inesperado: alguém que entrara na sala de audiências com a convicção de vir prestar um dever à comunidade, como aliado do Estado, sai da mesma sala com uma corda que o próprio Estado lhe pôs pescoço.

E isto, não porque tenha dito, agora em julgamento, algo de errado, nem porque o Ministério Público não devesse extrair as benditas certidões, mas sobretudo porque, em momento anterior, não se soube proteger.

Não se encontra prevista a obrigação legal de uma testemunha ter de se fazer acompanhar de advogado aquando da respetiva inquirição. De facto, o legislador, de uma forma bem mais comedida, preferiu, tão-só, oferecer essa possibilidade (artigo 132.º, n.º 4, do Código de Processo Penal).

Mas parece não poder ficar-se por aqui. Neste contexto, dir-se-á haver um certo desfasamento entre o direito processual penal by the book e o direito processual penal na prática. E tanto é assim que se entende que a assinalada “possibilidade” que a lei oferece deve ser lida – isso sim – como um verdadeiro ónus da própria testemunha.

Na verdade, sem quaisquer melindres ou receios, um advogado intervém as vezes que forem necessárias para acautelar os direitos (arrisco dizer) de defesa de uma testemunha, impedindo qualquer tipo de pressão interna ou externa e, sobretudo, pugnando pela redação de um auto de inquirição o mais fiel possível ao depoimento por si prestado.

Tudo isto com evidentes consequências positivas diretas para a pessoa que é chamada a assumir o papel de testemunha, mas também com reais consequências positivas indiretas ao nível da busca da verdade material e do bom andamento da justiça.

Em suma, enquanto a lei não muda – o que muito provavelmente nem sequer acontecerá –, apenas se julga mais avisado que todas as testemunhas se façam acompanhar de advogado. Mais do que algo supérfluo e dispensável, trata-se de um mecanismo útil para corrigir “fatores desviantes” de um paradigma porventura em evolução.

Conselho que se tem por sensato, porque, como bem sabe, Senhora testemunha, “mais vale prevenir do que remediar”.