1. Domingo de manha meti-me num táxi e dei com a infalível Rádio Amália. Vinha a calhar. Na véspera ,já tarde, perto da meia noite, na esquina da Duque de Ávila com a Avenida da República, observara extasiada a gloriosa passagem dos gloriosos encarnados e do seu tetra e isto para não falar, das irrepetíveis vinte e quatro horas de Fátima.

Eu não sei se António Costa foi ouvir algum fado neste domingo, após ter estado tão feliz em Fátima no sábado e de horas depois ter apanhado com a jubilosa vitória do seu e meu Benfica. Mas talvez não lhe valesse a pena andar afanosamente à procura do fado pela cidade, quem sabe se Salvador Sobral, mesmo que momentaneamente, não terá encarnado, aos seus olhos, a canção nacional. Também vinha a calhar e pela festa ,parecia. O que sei é que dizer coincidência – ou dizer o que quer que seja, de resto – ficará sempre aquém da espantosa ironia do feito. Basta apenas atentar na velocidade com que se eclipsaram hoje os efeitos maléficos que ontem as esquerdas que aí estão, nos diziam que o fado, Fátima e o futebol teriam sobre o pobre povo, para perceber como a natureza humana política se ajeita ao que convém. E mesmo suspeitando eu que o dr. Salazar não apreciava qualquer dos “efes” que supostamente delimitariam o perímetro da nossa alienação, para a minha felicidade contribuíram generosamente, passe o choque desta abrupta confissão. Deve até haver pouca gente no país que lide tão bem com eles (os “efes”) e os pratique com tão pública convicção.

2. O fado só pode ter vindo ter comigo na casa onde nasci, aqui no Campo Grande. Ao tempo dos Condes de Vimioso que nela habitaram em meados do século XIX – antes de ser comprada por antepassados meus — o fado escorria pelas paredes. Havia touradas no pátio onde hoje vivo, dizia-se que vinha a Severa e cantava, a noite consumia-se por entre festas concorridas, altíssima boémia, alma e cantorias que deixaram assinatura e memória na então casa da Quinta dos Condes de Vimioso. Terei ficado com alguma coisa disso. E se não entro numa praça de touros, tenho o fado comigo desde que me lembro. Contavam-nos estas e outras histórias em pequenas, às minhas irmãs e a mim e divertíamo-nos a detalhar como seria o pátio com touros lá dentro ou guitarristas dedilhando nos degraus de pedra. Depois, no tempo dos meus pais , lembro-me que por vezes também se “fadistava” e que Amália aqui cantou. Estava longe de sequer adivinhar que um dia entrevistaria a diva com uma devoção difícil de explicar. Mas nesse tempo eu ainda não sabia que a vida –regra sem excepção — é sempre mais poderosa que o sonho.

3. O Benfica é mais inexplicável, porventura totalmente inexplicável. Foi pelos treze anos e o Campo Grande ia caindo: “do” Benfica? A família perplexizou. O meu pai honrava o Belenenses, as minhas irmãs não eram de nada, os amigos ou militavam no Sporting ou eram-lhe afeiçoados. Era como se o Benfica não fosse frequentável, julgo que nas paragens da minha infância e adolescência “se” suspeitava que seria “do reviralho” e a nossa casa era salazarista, com muito respeito. Pois bem, eu ate sócia me fiz da Luz, catedral que muito frequentei durante anos, em ambas as suas versões. Acompanhei o clube como convidada a algumas jornadas europeias, entrevistei jogadores, Eriksson veio jantar a nossa casa. Guardo uma foto com Eusébio e, no dia em que ele morreu, fui para a rua homenagear a passagem do seu carro funerário. E flor entre as flores, consegui uma vez, estava então no Público, juntar Artur Jorge, treinador do Porto, e Eriksson, do Benfica, para uma entrevista quando os clubes que ambos treinavam estavam empatados no campeonato (ainda não se dizia Liga).

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Paixão antiga esta, inamovível, fidelíssima. Ligeiro (ou melhor, pesadíssimo) senão: a ocorrência de um Benfica/Sporting ou de um Sporting/Benfica, revisto pela conjugalidade. Acontece-nos bastantes vezes mas é pior quando estamos fora de portas.

O silêncio do campo e a solidão do lugar acicatam-nos a rivalidade. O tom sobe, as (minhas) imprecações também, nenhum de nós vê os lances da mesma maneira. Não costuma acabar bem.

Parabéns Benfica.

4. E agora vou ao que de mais sério poderá justificar este texto. Pelo incomum significado do que se viu e ouviu em Fátima. Pela vinda do Santo Padre a Portugal na mais disponível, mais despida das condições que é a de peregrino. Pela canonização, pela primeira vez na longa vida da Igreja, de duas crianças não mártires. Rudes, simplórias e analfabetas. Pela visita do Papa Francisco a um Santuário que cumpria cem anos sobre a primeira aparição (se quiserem podem ler “visão”) de Nossa Senhora, ali celebrada pelo gesto e o verbo do Santo Padre. Eis o que, apesar de já irreversivelmente inscrito na história do mundo e na da Cristandade , perturba tanto quanto inexprimivelmente confunde.

“Não é simples conviver com isto, a graça que nos foi dada a viver requer tempo para ser interiorizada e aprofundada em todo o seu alcance”, dizia-me D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima e muito inspirado cicerone daquelas horas. É verdade. Mas também me ocorrem as palavras do sacerdote espanhol José António Pagola, teólogo crucial pela forma como “pensa “ o Evangelho, quando alerta para que ”nem tudo é reduzido à razão”. Em Fátima, estes dias, percebeu-se melhor isso mesmo.

O Papa não veio por vir. Legitimou um sítio e adubou uma fé mas trouxe desafio e pediu compromisso. Reafirmou a “proximidade”, entendida como o “ir ter” com o menos apetecível dos próximos; a urgência da conversão; o poder de dádivas como é o perdão; o valor quase demencial da misericórdia.

Não veio por vir, tinha uma agenda. Vir sem depois acontecer nada no dia seguinte, não parece ser com ele. Se era só para ver Nossa Senhora, na “eternidade haverá tempo para isso”. Ele sabe que agora o tempo é de sentinelas. Naquele silêncio imóvel onde cabia a luz e a sombra, a culpa e a redenção e se ouvia o sussurro de Deus, Francisco pediu essa coisa imensa que são sentinelas. Sentinelas da mensagem de Fátima sob a forma de uma nova madrugada.

5. Não se esquecerá, julgo eu, a dignidade, a beleza, a cadência, a sobriedade , a intimidade, das cerimónias no Santuário. Desde o minuto em que um helicóptero com um homem á janela vestido de branco descia sobre a Cova da Iria, até á despedida ao pé de um avião imobilizado numa pista, cada pessoa daquela magna organização sabia a cada momento, o que estava a fazer. Não posso — nem quero — impedir-me de felicitar os seus mais altos responsáveis pela intensidade por eles preservada deste momento irrepetível da nossa vida colectiva. Com ou sem fé.

6. Havia portugueses suficientes para tudo o que aconteceu em Portugal no sábado?, perguntava ontem ao telefone um filho que vive longe e fora. De facto.