A vida gera diferença a todos os níveis, não igualdade. A vida tende natural e espontaneamente para a pluralidade. E ao gerar diferença biológica, gera diferença de comportamentos e diferença de papeis sociais. Estes últimos, gerados pela vida em comunidade, podem evoluir, e têm evoluído ao longo do tempo, mas não por imposição de cima para baixo. Essa evolução, pelo contrário, é emergente. É por haver variedade de comportamentos na sociedade, e por alguns indivíduos ou grupos ousarem desafiar o padrão habitual das regras num dado momento, que se criam as condições para haver evolução, por um mecanismo de selecção. Se se destrói esta variedade e se impõe, de cima para baixo, um monolitismo de papeis e comportamentos, cria-se uma situação aberrante, contrária às leis da vida. Quem tem mais do que 50 anos sabe bem como os costumes e tradições mudaram neste curto período de tempo. Mas foi uma mudança de baixo para cima, não imposta através do Estado, por via administrativa, por uma dúzia de cabeças iluminadas.

Assim como a evolução biológica se funda na diversidade genética, e tudo na natureza concorre para promover essa diversidade, porque ela facilita a adaptação ao ambiente, também a evolução de costumes e tradições se funda na diversidade de comportamentos e papeis existentes na sociedade, sobre a qual actuam os mecanismos de selecção e de coevolução. São estes comportamentos e papeis que servem de base para a emergência dos padrões dominantes de costumes e tradições que caracterizam cada sociedade em cada época. Este é um processo essencialmente ascendente e não descendente. Nem todo o conhecimento incorporado em costumes e tradições é explícito. Pelo contrário, muito dele, como linguagem corporal e atitudes emocionais, ou o conhecimento incorporado em instituições, é e sempre foi implícito e dificilmente poderá ser racionalizado. Querer controlar este processo é um delírio da razão, e é não perceber nada do modo como se formam os costumes e tradições de uma sociedade.

Num processo tão complexo como a evolução dos comportamentos e papeis sociais ninguém sabe o que vem a seguir, quais as novidades que o futuro nos reserva. Basta recuar três ou quatro gerações para perceber isto. Ninguém há setenta ou oitenta anos imaginava a autêntica revolução de costumes que as últimas dezenas de anos testemunharam. Tudo o que existe actualmente nesta matéria lhes pareceria inverosímil. Mas não foi uma revolução imposta, ela emergiu naturalmente. Não foi sequer em países como a União Soviética, a China, ou a Europa de Leste, que sofreram revoluções políticas no último século, que ela ocorreu de forma mais profunda e duradoura. Essas revoluções de costumes aconteceram essencialmente nos países livres, porque só estes países tinham nas suas comunidades o lastro de diversidade e flexibilidade de regras que permite a mudança acontecer.

Nestas questões, qualquer mudança imposta de cima para baixo, ou se alicerça em usos e costumes já enraizados na sociedade, ou arrisca-se a ser efémera e passageira, porque contranatura. Friedrich Hayek, ao analisar o comunismo, apontava, como uma das razões para o seu declínio, o facto de ele ser contra duas instituições que fazem parte da tradição cultural do Ocidente: a família e a propriedade privada. Dizia ele, bem antes da União Soviética se desmoronar, que “the only religions that have survived are those which support property and the family. Thus the outlook for communism, which is both anti-property and anti-family (and also anti-religion), is not promising. For it is, I believe, itself a religion which had its time, and which is now declining rapidly.”

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Os fenómenos sociais constituem um sistema integrado, com vida própria espontânea, em permanente processo de mudança e auto-organização, e não obedecem a quaisquer leis que sejam passíveis de ser controladas por via da razão. Por outro lado, devido à sua complexidade, nunca conseguiremos ter deles uma visão completa, global. Um dos erros fundamentais do socialismo e comunismo está na sua interpretação global e “fechada” do processo social. O que podemos fazer é tentar perceber uma ou outra das linhas de força que orientam a sua evolução, e tentar facilitar ou condicionar um ou outro aspecto, mas tendo sempre presente que qualquer intervenção num fenómeno tão complexo pode ter um efeito oposto ao pretendido. E nunca nos devemos esquecer que a vida é incomparavelmente mais fecunda e colorida nas suas criações do que são os planos que a nossa razão possa deliberadamente desenhar. Se compreendermos isto começamos a dar outro valor às tradições que se desenvolvem num ambiente de liberdade.

Dorion Sagan diz que “living beings are natural purposes ‘designed’ by nature”. O mecanismo da selecção natural conduz ao aparecimento de seres e estruturas aparentemente desenhadas para um fim. O mesmo acontece com as tradições e instituições de uma sociedade, que são do mesmo modo “desenhadas” pela natureza e que também têm um propósito ou cumprem uma função, mesmo que por vezes ela não nos surja imediatamente evidente. Foi o nosso antropocentrismo que nos fez imaginar que controlávamos as nossas tradições, instituições e cultura, quando, em última instância, é essencialmente o contrário que acontece. O seu crescimento é orgânico, resultado de um acumular de experiência de muitas gerações que vão introduzindo alterações sem ter consciência do conjunto, tal qual como nós fazemos actualmente. Nenhum indivíduo ou grupo, em qualquer época, teria a capacidade ou a inteligência para atender a todos os detalhes e reproduzir ou simular intencionalmente um processo tão complexo como este.

Voltando a Dorion Sagan, ele diz que “we are literally living time capsules, museums in motion”. Assim como nós, no nosso metabolismo, somos um registo dos acontecimentos da evolução da vida desde os seus primórdios, como que reproduzimos a história da vida, também as tradições e instituições de uma sociedade têm essa característica. Se olharmos para a língua, o sistema de regras morais ou o sistema legal de um país livre, eles representam uma memória viva da história desse país e do seu povo.

A grande diferença entre o nosso país e outros países da Europa que, ao contrário do nosso, gozaram de longos períodos de verdadeira liberdade, como, por exemplo, o Reino Unido, não está no PIB ou noutros parâmetros quantitativos, mas sim no carácter intrincado e complexo, com muito mais conhecimento incorporado, do seu tecido social, da sua matriz de tradições, cultura e civilização, que são produtos de crescimento e evolução em liberdade, e que tornam essa sociedade, para além de única, muito mais resiliente aos solavancos da história e muito mais apta a aproveitar as oportunidades, sejam elas quais forem. Não me estou aqui a referir a conhecimento explícito, que esse anda por todo o lado, e, nos tempos que correm, é acessível a toda a gente, mesmo a quem não vive em liberdade. Estou a referir-me a conhecimento implícito, sujeito à prova do tempo, incorporado nos hábitos e tradições, na língua, na moral, no sistema legal, nas instituições, nas atitudes.

A vida procura e luta pela liberdade, porque a vida, no seu sentido mais amplo e profundo, só se realiza em liberdade. A ciência tem vindo a abandonar interpretações “mecanicistas” e “fechadas” e a abrir-se a uma compreensão mais profunda dos fenómenos. É tempo de também a política se abrir à vida e à criatividade dos indivíduos e da sociedade em vez de tentar impor-lhes disciplinas de comportamento uniformes e monolíticas.

Médica