Como reagiriam as pessoas normais se a chanceler alemã Angela Merkel declarasse que, actualmente se assiste a “uma demonização excessiva de Hitler” com vista a atacar a Alemanha? É impossível imaginar, pois não imagino Merkel a pronunciar semelhantes palavras e, se o fizesse, isso simplesmente significaria o fim da sua carreira política na Alemanha e na Europa. Resumindo, cairia não só o Carmo e a Trindade, como a Catedral de Colónia e as Portas de Brandeburgo.

Como reagiriam em Portugal se algum estudioso ou algum dirigente português declarasse que assistimos a “uma demonização excessiva de Salazar”? É fácil imaginar os protestos, e penso que haveria boas razões para isso, principalmente daqueles que foram vítimas da repressão ou da política económica e social desse ditador.

Já não acontece o mesmo quando o Presidente russo afirma, numa entrevista ao realizador norte-americano Oliver Stone, que “a excessiva demonização de Estaline” é uma das formas de atacar a URSS e a Rússia.

“Considero que a demonização excessiva de Estaline é uma das vias de atacar a União Soviética e a Rússia. Mostrar que a Rússia actual tem alguns sinais do estalinismo. Todos nós temos sinais. E depois?”

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Vladimir Putin considera – e bem – que Estaline é uma “figura complicada” e compara-o a Cromwell e a Napoleão para concluir que “semelhantes personagens, semelhantes situações na história mundial são mais do que suficientes”.

Mas por que não comparar Estaline e Hitler, que viveram na mesma época, cometeram crimes hediondos, mataram milhões de pessoas e até, em determinada altura, foram aliados e amigos na luta contra os países democráticos e antifascistas? O conhecido Pacto Molotov-Ribentropp vigorou entre Agosto de 1939 e Junho de 1941, tendo sido uma das causas do início da invasão da Polónia e da Segunda Guerra Mundial.

Por outro lado, Putin afirma que a “Rússia mudou radicalmente”, sublinhando que isso “não significa que nós devemos esquecer todos os terrores do estalinismo, ligados aos campos de concentração e ao extermínio de milhões dos seus concidadãos”.

Juntando as declarações sobre Estaline e o estalinismo, compreendemos a actual posição dos dirigentes russos face à sua história recente, posição extremamente ambígua e demagógica. Gostaria muito de ver o Presidente russo a explicar-nos até onde é possível não demonizar a figura de um dos mais cruéis ditadores da história da Humanidade. Dizendo que Estaline transformou um país agrário numa superpotência? Isto nada tem de louvável e extraordinário se tivermos em conta que foi realizado com mão de obra escrava, praticamente gratuita. Dizendo que Estaline venceu a Segunda Guerra Mundial? Mentira, porque não fosse a coragem dos soldados e oficias do Exército Vermelho e o ditador soviético teria sofrido pesadas derrotas. Hoje sabe-se que muitas decisões de Estaline no campo militar conduziram a autênticos desastres e derrotas no combate contra o fascismo.

Assim como não se pode demonizar o demónio, porque não há demónios bons e demónios maus, também não se pode demonizar Estaline, Hitler, Mussolini, pois concentram todos os males em si. E não me fazem mudar de opinião as fotografias desses ditadores a fazerem festas ou a brincarem com crianças.

Quanto ao argumento de que a “demonização de Estaline é uma das vias para atacar a Rússia”, trata-se claramente de uma forma de Vladimir Putin se vitimizar, táctica utilizada também pelo antigo ditador soviético.

Na “Conversa com o Povo”, realizada na quinta-feira, o Presidente russo explicou as sanções contra o seu país não com a violação do Direito Internacional por ele próprio ao ordenar a anexação da Crimeia e a invasão do Leste da Ucrânia, mas pelo receio do Ocidente face a “uma Rússia que se levanta”, “que se torna mais forte”, frisando que o seu país viveu praticamente sempre sob regimes de sanções. Isto faz recordar a teoria estalinista do cerco imperialista à “União Soviética socialista”, que serviu tanto para reprimir qualquer crítica, como também para explicar aos soviéticos porque é que eles tinham um nível de vida bem mais baixo do que, por exemplo, os países europeus.

No mesmo programa televisivo, Putin quase agradecia as sanções do chamado Ocidente, porque estas teriam dado um forte impulso ao desenvolvimento interno do seu país. A serem estas teses verdade, a Rússia já deveria estar entre os países mais desenvolvidos e prósperos do planeta de todos os pontos de vista.

Oliver Stone podia ter feito estas perguntas a Putin, mas não fez, por isso a entrevista mais pareceu uma acção de propaganda de mais um “grande líder”.