A temática da síndrome de burnout está cada vez mais presente no contexto laboral dos médicos portugueses. Os motivos para esta crescente preocupação da Ordem dos Médicos com este assunto são vários, sobejamente conhecidos e acentuam-se quando nos deparamos com notícias que dão conta de mais um médico que foi “apanhado” a dormir no Serviço de Urgência durante a madrugada. Abstenho-me de comentar o gesto ilegal de quem preferiu filmar de forma abusiva este acto e divulgar pela comunicação social a “exaustão” do médico, sem qualquer respeito pela sua reserva de intimidade e dignidade.

Os médicos trabalham cada vez mais submetidos a uma burocracia informática que os leva a perder demasiado tempo com a utilização de aplicações que, não raras vezes, funcionam mal ou nem sequer funcionam. A isto juntam-se os reduzidos tempos de consulta, as extensas listas de utentes no caso da Medicina Geral e Familiar, os cortes salariais sofridos nos últimos anos, as tremendamente injustas remunerações das horas extraordinários, o atraso absurdo e falta de concursos para progressão na carreira médica, o incumprimento reiterado na aplicação prática dos descansos compensatórios obrigatórios, as dificuldades em optimizar os tempos de blocos operatórios por falta de recursos humanos ou de condições físicas adequadas. E por aí fora.

A escassez de capital humano no Serviço Nacional de Saúde (SNS) associado a uma exigência de resposta cada vez maior para garantir o acesso a cuidados de saúde, é o mais grave dos problemas com que os profissionais de saúde e o SNS se debatem no momento atual. Faltam médicos, enfermeiros, assistentes operacionais, administrativos e técnicos. E outros profissionais de saúde.

A realidade é que muitos médicos têm dificuldade em suportar as exigências excessivas e a elevada pressão dos números impostos pelas administrações que, em muitos casos, não respeitam a sua dignidade e os seus direitos, e trabalham diariamente desmotivados e com riscos reais de esgotamento.

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Na dissertação de candidatura ao grau de Mestre em Medicina realizada em 2013, a investigadora Cátia Leitão verificou que nos hospitais de Santo António e de São João no Porto, 21% dos médicos obtiveram um nível alto de exaustão emocional, 8% um nível alto de despersonalização e 19% um nível baixo de realização pessoal. A prevalência de burnout encontrada foi de 22%, enquanto 8% revelaram vulnerabilidade aumentada ao stress.

Como características sócio demográficas que, de acordo com este estudo, tendem a estar associadas a níveis mais elevados dos componentes do burnout, a investigadora referiu o ser homem, ser interno de especialidade, ter vínculo laboral precário, a ausência de filhos e de passatempos e ter menos de 6 anos de profissão.

Num trabalho recente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos constatou-se que, entre a classe médica da região Centro, 40,5% revelou sinais de exaustão emocional, 17,1% apresentou despersonalização e 25,4% referiu não realização profissional. Sete em cada cem dos inquiridos apresentaram sinais de burnout elevado, com especial incidência na faixa etária dos 26 aos 35 anos.

Os resultados destes trabalhos são claros e inequívocos. E em breve deverão ser reforçados com as conclusões do Estudo Nacional do Burnout na Classe Médica que a Ordem dos Médicos está a promover, em colaboração com o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Mas há algo que estes dados permitem desde já inferir. Se nada for feito, os níveis de exaustão emocional e de baixa realização pessoal vão continuar a aumentar com prejuízos claros, desde logo, para os próprios médicos e, em última análise, para os doentes.

Uma crescente desmotivação para o trabalho tende a dificultar as relações com os doentes e com os outros profissionais de Saúde, a torná-las mais tensas. A exaustão potencia o erro médico e, no limite, um profissional em situação de burnout será mesmo obrigado a suspender a sua actividade clínica. Num sistema de Saúde, como é o caso do SNS, que tem de lidar diariamente com a falta de clínicos, as consequências de ausência de acção dos responsáveis políticos serão desastrosas.

É vital que o ministro da Saúde reforce o capital humano do SNS, contratando não só mais médicos, mas também mais enfermeiros, assistentes técnicos e assistentes operacionais. É urgente alterar as condições de trabalho no SNS para impedir o agravamento da situação, recuperar as pessoas com sinais de burnout e evitar uma desgraça maior para os profissionais de saúde e os doentes. É preciso reduzir as listas de utentes que cada médico de família tem a seu cargo. É essencial que os médicos tenham mais tempo para os doentes e possam participar na promoção da saúde e prevenção da doença. É obrigatório reduzir a pressão sobre os profissionais de saúde. É imperioso investir na melhoria e integração das aplicações e equipamentos informáticos, para diminuir o peso que a burocracia informática tem neste momento na assistência médica. É fulcral investir na modernização dos meios e equipamentos de diagnóstico e terapêutica. É mandatório retribuir os médicos de acordo com o elevado nível de responsabilidade que têm na sociedade civil, remunerar o trabalho extraordinário a 100%, assegurar o justo cumprimento dos descansos compensatórios obrigatórios por lei. Estas e outras medidas, são fundamentais para melhorar o grau de motivação, satisfação, desempenho e segurança dos profissionais, e contribuir para diminuir o erro em saúde. Recuperar e valorizar as pessoas é a melhor forma de garantir a qualidade da medicina e diminuir a síndrome de burnout.

Num mundo cada vez mais conectado em formato virtual e informático, é emergente voltar à essência da profissão, humanizar a Medicina, dar mais tempo aos médicos para fazerem aquilo que sabem e aquilo para o qual estudaram mais de uma década: escutar, olhar, conhecer e falar com os doentes, entender as várias dimensões da saúde e da doença, para diagnosticar correctamente e definir a terapêutica adequada.

Este será também um passo decisivo para evitar que os médicos se sintam cada vez mais esgotados e desmotivados. Os doentes, e o país, só têm a ganhar com isso. E talvez assim, num episódio futuro, o cidadão-jornalista opte por acordar o médico em vez de o filmar a dormir.

Presidente do Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos