Muita gente, a justo título, manifestou indignação pela intervenção da deputada do Bloco de Esquerda Mariana Mortágua, aplaudida por socialistas do PS, que aconselhava virtuosamente perda de vergonha e passagem ao acto: ir buscar o dinheiro onde ele está, nas contas de quem amealhou. “Perder a vergonha de ir buscar dinheiro a quem está a acumular dinheiro”, as suas palavras. Mariana Mortágua, uma pessoa que, a julgar pelas suas aparições televisivas, tem facilidade de falar e é esperta, sofre do defeito de muitas pessoas com facilidade de falar e espertas: a tendência a falar com aparência de sentido e sem sentido nenhum. Ou melhor: defendendo uma teoria da sociedade que, prometendo o maior bem-estar a todos nós, acarretaria, na sua execução prática, a mais extensa das catástrofes colectivas. Dito ainda de forma mais simples: uma vigarice criminosa. Que o PS (qual a surpresa?) aplaudiu festivo e risonho. Há um desejo de Cuba em cada cérebro socialista. Entre-se um bocadinho por lá dentro e até se encontrarão umas sinapses electrizadas de ternura para com a defunta RDA. Não há, de facto, surpresa.

Muita gente disse que o caminho do Governo, que segue, por convicção e não por acidente, a doutrina de Mariana, nos vai, a curto prazo, “venezualisar”. Acho pouco. Na sua esquizofrenia, a consequência é mais radical. É deixar Mariana Mortágua levar às últimas consequências a sua geral concepção da sociedade e dos remédios para a pôr direito e acabamos é voltando ao estado de caçadores-recolectores, para o qual as Finanças nos andam, de resto, a preparar. Teoricamente, tal retorno tem, é bom lembrá-lo, pergaminhos teóricos. É que não existe propriedade privada. As hordas apanham o que estiver à mão. Se a sociedade comunista perfeita se manifestou irrealizável, é sempre possível voltar ao “comunismo primitivo” de que falava Marx. Claro que os mais velhos podem ter alguns problemas. Eu, que moro na Rotunda da Boavista, até podia dar um saltinho, digamos, à Ramada Alta, na companhia de um alegre grupo expedicionário, para valentemente me abastecer de bens sortidos e gratuitos. Mas algo me diz que uma coisa ou outra, com o azar que me faz aspirar à paz burguesa, me haveria de correr mal. Os jovens do Bloco, e os bloquistas mais velhos, que têm um espírito muito jovem, sair-se-iam, no entanto, muito bem, estou certo. E que importa o caso de um indivíduo? Além de tudo, esta aventura teórica pré-Neolítica promoveria, segundo os mais competentes estudiosos, uma igualdade dos sexos, que partilhariam em conjunto os prazeres e os riscos da vagabundagem predatória.

Aqui, no entanto, convém parar para meditar. É que alguma literatura nos diz que os grupos tendencialmente nomádicos em questão não conheciam chefes. Estão a ver o problema, não estão? O Bloco depende, para a realização das suas intenções, do PS, e o PS tem um chefe, de seu nome António Costa. E, pelo que se conhece dele, é um chefe que gosta, e gosta muito, de ser chefe. Não se está muito bem a vê-lo abdicar do seu estatuto e a embarcar em aventuras colectivas que não passassem pelo filtro do seu superior discernimento. Há limites para tudo, até para a capacidade de “fazer pontes”. “Perder a vergonha” de ir buscar o dinheiro onde ele está, nada contra. Mas é preciso uma organização, uma hierarquia e um centro decisor.

Como conciliar estes dois projectos? Aqui tem que entrar alguma cedência, e os propósitos pré-neolíticos de Mariana Mortágua têm, de alguma maneira, de reduzir o seu escopo, sem no entanto perderem o mais significativo da sua dimensão teórica. Eis a minha sugestão. Medite-se a sério no modelo de certas tribos ainda hoje vivas e estudáveis. Ponto fundamental: têm chefes. O que é mais do que suficiente para António Costa prestar um ouvido atento às sugestões conciliatórias. Por outro lado, a ausência de bens materiais satisfaria inteiramente o Bloco: ninguém teria dinheiro. O que significa que a nefanda raiz das injustiças todas teria encontrado o seu merecido fim. Quem não vê aqui um magnífico sinal de convergência, uma quase miraculosa “ponte”? O Paleolítico permaneceria como um ideal, objecto de desejo utópico e ideário permanente. Mas é preciso, de facto, sacrificar alguma coisa.

Claro que é legítimo prever um ou outro retrocesso. Enquanto Costa e os valentes guerreiros partiriam devidamente decorados e emplumados em busca do ocasional porco selvagem e de um ou outro macaquinho mais propício a consolidar a reversão da austeridade, alguém teria de ficar na aldeia preparando a mandioca ou qualquer coisa assim, um papel tradicionalmente atribuído às mulheres. Isso e, suponho, catar os piolhos. Mas que são essas minudências comparadas com a final satisfação do grandioso desígnio de nos tornar a todos pobres – pobres a sério, ao ponto perfeito de nos esquecermos da riqueza dos outros? Não é o Paleolítico, mas é sem dúvida um sinal do ideal. Agarremo-nos a ele. Comecemos pela pedra polida. Com o tempo, chegaremos à pedra lascada.

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