Apesar de todo o impacto da luta pela liderança do PS, justifica-se ainda um comentário ao ataque desencadeado na última semana contra alegadas impropriedades cometidas pelo actual primeiro-ministro quando era deputado há perto de 20 anos. Se é verdade que as questões de falta de ética têm sido permanentes na vida portuguesa desde que o sistema político entrou em fase de estabilização com a adesão à União Europeia, não é menos certo que tais questões desaguaram na esmagadora maioria dos casos em “águas de bacalhau”…

Um tema correlato deste é o das campanhas albergadas ou promovidas pela comunicação social, sobretudo depois de esta ter sido parcialmente privatizada (a televisão ainda é em princípio governamentalizada, mas o governo parece ter perdido o comando da RTP por causa da ameaça de privatização). O resultado destes jogos de acusações e negações, quer venham a provar-se ou não, é deixar dúvidas que nunca desaparecem por completo e que só podem reforçar o cheiro a corrupção que se respira entre nós. Foi isso que se passou uma vez mais, envenenando o ambiente político e tornando impossível a reforma do Estado e do sistema de representação partidária, como sucedera aliás nas “primárias” do PS, quando um dos candidatos acusou o outro de ser protegido por grupos de interesses associados aos partidos portugueses.

Começa tudo por essa instituição da denúncia anónima. Ignoro se esta prática kafkiana é comum nos sistemas de justiça internacionais, por exemplo nos tribunais da União Europeia. Seja como for, é indiscutível que a confiança da generalidade dos cidadãos na justiça portuguesa – até por tal confiança ser hipocritamente repetida por todos os agentes políticos e económicos portugueses quando são apanhados nas suas eventuais teias – é nula. É por isso que os casos levados à Provedoria de Justiça em Portugal são reconhecidamente baixos à escala internacional, como acontece com as reclamações dos particulares contra serviços públicos e grandes empresas, segundo estudos conhecidos há décadas pelos gabinetes ministeriais.

Duas correntes surgem sempre que é desencadeada uma dessas denúncias anónimas, para mais a propósito de um caso já prescrito, o que impede a Procuradoria-Geral da República de investigar o eventual crime. Uma dessas correntes é a de que “não há fumo sem fogo”. Em 2005, já José Pedro Castanheira publicara uma tese onde mostrava que a esmagadora maioria das cartas de leitores enviadas ao semanário “Expresso” era anónima. E hoje é conhecido que o anonimato prevalece – e conspurca – a chamada blogosfera. Ora, sendo certo que nalguns países as declarações de impostos são públicas, já numa terra como a nossa muita gente pensa o mesmo que o primeiro-ministro português quando um deputado da oposição lhe disse para exibir a sua conta bancária: “Não faço striptease”. E António José Seguro faria striptease para provar que o conteúdo de uma carta anónima era falso? Provavelmente não. Todavia, numa cultura de profunda desconfiança na justiça como a nossa, continua a ser muito forte a tendência para pensar que “não há fumo sem fogo”. Ou inversamente, para protestar contra a injustiça de determinada sentença, como sucedeu há pouco tempo com a antiga ministra Maria de Lurdes Rodrigues.

A outra tendência que vigora em situações como aquela em que se encontrou Passos Coelho, em países onde não há confiança na justiça (nem no fisco, nem no Estado, nem nas empresas, nem nas outras pessoas em geral), é a de ceder às chamadas teorias da conspiração: a culpa é dos jornais, que só querem vender papel e tempo de antena; ou da oposição; ou pior ainda, dos dois. Quem prova o contrário, se nem os tribunais nos convencem plenamente, como se passou há pouco com a sentença dos arguidos da “Face Oculta”? Para não falar dos notáveis que vieram abonar Ricardo Salgado antes mesmo de este ter sido formalmente acusado do que se passou no Grupo BES, invocando o princípio ritualístico de que “todos somos inocentes até prova em contrário”.

Ora, quem quiser dar-se ao gáudio da teoria da conspiração tem muito com que se entreter. Não foi a carta anónima enviada em Junho, logo após as eleições europeias, para ser apenas divulgada no final das “primárias” socialistas em que António Costa seria eleito? Não afirmou Mário Soares: “Eu bem tinha dito que o governo caía em Setembro”? Antes disso, não afirmara Costa, durante a briga com Seguro, que o seu interlocutor no PSD era Rui Rio? Se a carta anónima tivesse vingado e Passos Coelho se tivesse demitido, não poderia Rui Rio assumir a liderança do PSD? E não poderia então António Costa, depois de tomar o poder, fazer com Rui Rio a aliança que Seguro não quis fazer com Passos Coelho, apesar da proposta de Cavaco Silva durante a crise do Verão de 2013, porque o partido de Sócrates não o deixou, perdendo assim a oportunidade de se tornar, porventura, primeiro-ministro? Assim se vê que a conspiravite não é menos nem mais plausível do que o fumo sem fogo. Quem paga é o sistema político e, por tabela, o país.

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