Tenho andado, a princípio sem quase disso me dar conta, à procura de uma palavra que exprima convenientemente uma forma particular de sentimento de reacção à irrealidade que, por estes dias, toma conta de mim muitas vezes. E que deve também tomar conta de muita gente, porque, a não ser assim, se o sentimento não fosse verosimilmente partilhado, o tempo perdido nestas coisas não valia a pena. As palavras certas não vêm imediatamente, e o melhor é dar exemplos de situações que me levam a isto.

No outro dia, numa estação dos Correios, estava à espera de uma encomenda. Os Correios são, como se sabe, além de bancos, pequenas livrarias. Às tantas, reparei no título de um livro, que se encontrava a uma pequena distância: “Como não morrer”. Não vejo bem, mas à medida que me aproximava da prateleira, já tinha adivinhado o subtítulo, escrito em letras mais pequenas. Era, é claro, algo como: “Um guia de receitas saudáveis”. A mania da comida “que faz bem” é certamente uma mania generalizada. Mas, se calhar por distracção minha, nunca tinha notado que alguém tivesse antes prometido a eternidade pelo processo simples da abstenção da ingestão de alimentos nocivos. É que era mesmo isso. Obviamente que o título não tinha sido concebido ironicamente, o que teria sido contraproducente para as vendas. Apelava a algo que, lá no fundo, as pessoas gostam de acreditar. O suficiente, certamente, para comprarem o livro. Arriscar uns euros para garantir a eternidade parece uma atitude sensata. A vigarice compensa. E o ministro da Economia pode aí encontrar uma base teórica suplementar para a taxa sobre os refrigerantes.

Outro exemplo, muito diferente. Na série de notícias que, quase quotidianamente, nos informam sobre mulheres que declaram terem sido no passado molestadas por Donald Trump, no outro dia apareceu uma bem interessante. Uma actriz de filmes pornográficos queixou-se de que ele, há não sei quantos anos, a havia beijado na boca sem o seu consentimento, tendo-se aparentemente limitado a isso. Não quero (não quero mesmo) manifestar qualquer desrespeito por uma profissão que requer formas de talento tão particulares como qualquer outra, e, como qualquer outra, baseadas em disposições humanas universais. E também não quero (não quero mesmo, mais uma vez) afectar indiferença pela questão do consentimento. Mas não sei como evitar um certo sentimento de irrealidade face à notícia. E o meu espírito voou para o princípio da última década do século passado, em Paris, onde uma espécie de “O Crime” francês oferecia o testemunho de uma jovem que se queixava de ter tido relações íntimas com cinquenta (50) realizadores de filmes pornográficos e nunca ter conseguido obter um só papel. Azar, digamos, para evitar possíveis explicações mais técnicas. Tivesse ela conhecido Trump e talvez, mais cedo ou mais tarde, tudo tivesse sido diferente.

Continuando com a irrealidade. Constava há muito tempo que o primeiro livro de José Sócrates não havia sido escrito por ele. Os jornais informam-nos agora de indícios que parecem abonar a favor da tese. E informam-nos também que o segundo, que está para sair, apresenta essa mesma característica. O verdadeiro autor de ambos os livros teria sido um professor universitário, a quem o nosso ex-primeiro-ministro teria pago generosas somas de dinheiro para a realização do feito. Não sei, é claro, se é verdade ou não, e, de resto, olhando para grande parte dos livros que se vêem, escrevê-los não parece exigir, para além de uma certa obstinação, ou inconsciência, qualquer talento excessivo. Mas a verdade é que a notória propensão de Sócrates para a irrealidade e a mistificação, algo cujas consequências são ainda palpáveis nas nossas vidas, oferece verosimilhança às notícias dos jornais. De qualquer maneira, tudo isto inspira o sentimento de estranheza, falta de confiança, embuste. A partir de certa altura, Sócrates tornou-se emblema de tudo isso. E persiste, como alguém a quem a realidade não interessa, nunca interessou. A realidade que está fora de si e do campo do exercício imediato da sua vontade, é claro.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Um último exemplo, o actual Governo. António Costa e os seus habituais porta-vozes garantem-nos que estamos no melhor dos caminhos para o melhor dos mundos. E que a famosa estabilidade está mais do que garantida. Em todas as frentes. Na frente externa, Bruxelas adora as nossas contas, que são um modelo de responsabilidade, rigor e eficácia, só um pouco aquém do maravilhoso, e nos melhores momentos transcendendo-o mesmo. Na frente interna, o PS, o Bloco e o PCP são, com todas as suas diferenças, irmãos de armas. Uma espécie de Três Mosqueteiros, galhardamente lutando contra os homens do Cardeal, isto é, Pedro Passos Coelho. E, como os Três Mosqueteiros, são até quatro, se contarmos a senhora dos Verdes. O único problema disto é ser literalmente inacreditável. Toda a gente que pense um bocadinho percebe que Bruxelas tem tudo menos confiança naquilo que o Governo lhe conta. E toda a gente sabe que a famosa geringonça, por muito forte que seja a cola do poder e os diversos benefícios que deste se podem extrair, e têm-se em abundância extraído, conhece, como tudo o resto, limites de elasticidade. Mais cedo ou mais tarde, por um imprevisível motivo ou outro, a coisa desfaz-se. A imprevisibilidade da hora e do motivo, que pode até ser o mais aparentemente insignificante que se possa imaginar, colocam-nos a todos nós numa espécie de suspensão sobre um abismo. Como o célebre coiote dos desenhos animados, de repente olhamos para baixo e, ao vermos que a pedra em que estamos se soltou do bordo da escarpa do desfiladeiro, começamos a rápida queda. Mais uma vez.

O que há de comum entre situações tão aparentemente diferentes entre si? E qual o nome que convém ao sentimento que exprime a nossa reacção a elas? Confesso que não sei bem e que o nome é tentativo. Talvez o que haja de comum seja a irrealidade ostensiva e mistificatória e a aparente boa consciência que preside à mistificação. Uma boa consciência que se alimenta da convicção que a vigarice compensa, tanto mais que o perdão se adquire facilmente. E o nome do sentimento que nos provoca viver num mundo assim, onde é difícil acreditar na boa fé de muitos que nos rodeiam? Passo por cima da ansiedade, que é demasiado geral, como também o desânimo, ou a irritação ou a frustração. Pelo menos para aqueles que não sofrem de curiosidade mórbida, e que arranjarão em tudo isto motivo de entretenimento, talvez o bom nome seja melancolia. Vivemos tempos melancólicos, tempos de perda de pudor e de decência.

Agora, no entanto, uma boa notícia. Mesmo sem curiosidade mórbida, podemos rir. Não garante, ao contrário da comida saudável, a eternidade, mas é melhor do que chorar. Montaigne aconselhava isso, e tudo o que diz Montaigne é verdadeiro. Dirão que um melancólico que ri é uma contradição. Mas, nestes tempos impostores, que importa isso?