Vejo muita gente saciada com a série de casos judiciais que marcou o ano de 2014, nela vendo um amadurecimento do nosso regime democrático. Desculpem, mas não consigo partilhar do sentimento. Pelo menos, por enquanto. Admito que me dá uma certa satisfação ver Sócrates detido, por sentir que está finalmente a prestar contas à justiça, ou verificar que Ricardo Salgado deixou de ser inimputável e que, finalmente, o poder lhe largou a mão. E, reconheço, agrada-me constatar como, sobretudo no caso das elites políticas, estas investigações incutiram medo em muita gente que, talvez pela primeira vez, deixou de se sentir acima da lei. Só que tenho uma preocupação que se sobrepõe a tudo isso: ainda não vi nada que me convencesse que este não passa de um fenómeno passageiro. E, enquanto assim for, não posso ficar satisfeito.

De facto, durante anos e anos, foi gritante a forma completamente impune como certas elites defenderam os seus interesses ou enriqueceram à revelia da lei, contando com a protecção dos seus pares e com uma justiça incapaz de olhar para os mais poderosos como olha para o cidadão comum. Não é uma teoria da conspiração, não é um exagero, nem é uma forma enviesada de olhar para os factos. Toda a gente sabe disto. Toda a gente sente isto. E, se não todos, muitos de nós conhecem histórias e casos concretos sobre quem chegou à política sem ter onde cair morto e de lá saiu rico. A dúvida é: essa impunidade acabou?

A sucessão de casos – Sócrates, Armando Vara, Lurdes Rodrigues, vistos gold, Duarte Lima, Ricardo Salgado – pode dar a entender que sim. Mas a resposta tem de passar por uma outra pergunta – o que mudou objectivamente entre 2008 e 2014, para que os resultados produzidos fossem diferentes agora do que eram antes?

Não há indicadores que mostrem que a corrupção aumentou, nem que houve alterações na composição das nossas elites – são as mesmas há décadas. De facto, à primeira vista, o que mudou mesmo foram os rostos da justiça: saíram Pinto Monteiro e Noronha de Nascimento, entraram Joana Marques Vidal e Henriques Gaspar. Isto é, trocaram-se as pessoas que, logo na altura, muitos viram como elementos de bloqueio a um conjunto de investigações judiciais. Se não há dúvidas que isso foi bom, também se percebe que isso não é suficiente – por duas razões.

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Em primeiro, porque parece que a justiça continua demasiado dependente das pessoas que a dirigem, quando o garante da liberdade e do bom funcionamento de uma república liberal está nas instituições, não nas pessoas. Isto equivale a dizer que nada impede que, a médio prazo, outras personalidades assumam a Procuradoria-geral da República, o Conselho Superior da Magistratura ou o Supremo Tribunal de Justiça, e optem por reverter o caminho. Ou, num exemplo mais imediato, coloquemos a questão nestes termos: sem o juiz Carlos Alexandre no DCIAP, teria havido investigação e detenção de José Sócrates? A dúvida assombra muita gente. E não é por acaso que alguém como Daniel Proença de Carvalho (que é próximo de Sócrates) a explora, criticando o juiz por este estar voluntariamente no DCIAP quando já poderia ter subido na carreira.

Em segundo, ainda não dá para estar plenamente satisfeito porque, para além da questão institucional, há um problema cultural que não parece ultrapassado. Portugal é um país muito dado ao respeitinho e onde o sucesso continua muito relacionado com o perfil social dos indivíduos. Esse é um dos garantes da impunidade que vigorou e vigora – não há uma real percepção de igualdade entre os portugueses. E isso não muda de um momento para o outro.

É que, por um lado, pergunta-se aos portugueses o que eles acham sobre a corrupção e a resposta não deixa dúvidas – 90% considera que a corrupção se encontra disseminada pelo país, 73% vê os partidos políticos como corruptos ou extremamente corruptos e 66% acha o mesmo em relação ao poder judicial. Só que, por outro lado, quando Sócrates é detido, vê-se meio mundo incomodado. É como se, com o passar do tempo, se tivesse passado a aceitar as regras viciadas do jogo só porque se aprendeu a jogá-lo assim mesmo. A mudança assusta sempre, mesmo quando corrige um mal que todos reconhecem existir.

Podem não existir razões para estarmos plenamente satisfeitos. Mas existem motivos suficientes para estarmos esperançosos que, de facto, os tempos de impunidade tenham acabado. E, agora que está na moda dizer faltam discursos que dêem esperança aos portugueses, isso não é um pormenor. Pelo contrário, é mesmo muito. É que é difícil imaginar algo que alimente mais esperanças do que um sistema de justiça a funcionar de igual modo para todos.