Convém lembrar, porque a memória é curta – aqui como no Reino Unido e em toda a parte – que a ideia de Teresa May de convocar eleições extraordinárias foi, no início, aclamada pelos mais diversos políticos e comentadores. Foi esta a primeira contradição de May – que no começo do mandato prometera que não haveria eleições- , mas que na altura, se não passou desapercebida, não suscitou indignação audível. Perdoou-se-lhe o pecadillo, tanto mais que os argumentos que apresentou para defender a sua ideia pareciam (e eram) convincentes. Teresa May partiu assim para as eleições numa posição de força que raramente acontece. Em meia dúzia de semanas, porém, desbaratou praticamente todo o seu capital político, encontrando-se agora, após uma dura derrota pessoal, numa situação aflitivamente frágil, vulnerável.

Para além dos ziguezagues que cometeu, e que comprometeram a sua anterior imagem de firmeza e coerência, teve, já depois da convocação de eleições, a infelicíssima ideia de anunciar uma medida de política social estúpida e cruel, a saber, o chamado “imposto da demência”: os idosos que beneficiassem de cuidados prolongados do Serviço Nacional de Saúde ou dos serviços de assistência social, pagariam, depois de mortos, a sua suposta dívida ao Estado através da mobilização de eventuais poupanças ou da venda da casa própria que possuíssem ! De um dia para o outro, May caiu a pique nas sondagens, enquanto Corbyn desatou a subir. Perante o vigoroso protesto público contra a tão absurda e injusta medida, May recuou, mas era tarde demais. Na véspera das eleições, houve sondagens que lhe davam apenas um ponto de vantagem sobre Corbyn. (Foi a meio desta curva descendente que a ideia de convocar eleições antecipadas começou a parecer uma péssima ideia.)

Por outro lado e para além disso, Teresa May, durante a campanha, nunca se cansou de martelar que estava preparadíssima para um hard Brexit. Nunca percebi esta insistência: há vários meses que anteriores dirigentes socialistas e figuras públicas avulsas tinham iniciado uma campanha em favor de parar para repensar o Brexit; a possibilidade de reversão do Brexit penetrou no mainstream da opinião pública. Neste contexto, a insistência num hard Brexit pareceu-me suicidária. Visivelmente, a avaliar pelos meios de comunicação social e pelo testemunho de ingleses que conheço – a começar pela minha família britânica – o público inglês, ou grande parte dele, começara a tomar consciência das consequências do Brexit, começara a interrogar-se se a vitória dos Brexiters em Junho do ano passado não fora o resultado de um referendo precipitado, e, ao que sei pelo que leio e ouço, não poucos concluíram que a saída do Reino Unido da UE produziria efeitos económicos negativos, nomeadamente no que respeita ao emprego. O voto de ontem no Partido Trabalhista, que oficialmente tomara a defesa do remain, foi assim um voto a favor de uma marcha atrás no Brexit, ou, pelo menos, a favor de um very soft Brexit. Corbyn, por uma vez e por acaso, estava do lado certo da história. Por acaso, sim: Corbyn foi acusado pelos militantes do seu Partido de não se ter empenhado o suficiente na defesa do remain aquando do referendo. Corbyn, como todos os radicais esquerdistas cuja cabeça funciona como funcionava há 40 ou 50 anos, era no seu íntimo favorável à saída do Reino Unido da UE, vista como um covil do Capital e dos capitalistas.

Oficialmente, no referendo de 2016 convocado por Cameron, e como ministra do Interior do seu governo, Teresa May alinhou no campo dos remainers, como então não podia deixar de ser. Seria lógico esperar que, uma vez primeira ministra e vinculada à vontade do eleitorado britânico, ela se preparasse para negociar um soft Brexit. Mas isto só aparece como lógico a quem não conheça o Partido Tory. Desde a fundação da CEE, os tories sempre foram atravessados por uma divisão insanável entre os pró e os contra o compromisso europeu da Grã-Bretanha. A facção contra é ferozmente contra, e nunca cessou de conspirar contra líderes que não repudiassem a pertença do Reino Unido à UE, ainda que fora do euro. Foi assim que essa poderosa facção deu cabo do sucessor de Thatcher, o decentíssimo primeiro ministro John Major (1990-1997), e depois removeu directa ou indirectamente do seu posto nada menos que três líderes seguidos, William Hague, Ian Duncan Smith e Michael Howard.

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David Cameron tentou liquidar a facção por meio de um referendo em que o povo inglês se pronunciasse claramente pelo remain in Europe, mas os eleitores ingleses deram a vitória aos Brexiters, surpreendendo até mesmo aqueles que tinham congeminado e conspirado contra Cameron e a favor do leave Europe. Cameron demitiu-se e fez muito bem. Com o mesmo intuito de calar a facção de uma vez por todas, Teresa May ensaiou uma manobra precisamente ao contrário: anunciou um hard Brexit, promessa que reiterava dia sim, dia não. Para se defender da nefasta facção e a calar, precisava de uma grande maioria, de uma legitimidade reforçada. Era da facção que viria a ameaça à sua autoridade e era dela que viriam as dificuldades – não eram os negociadores europeus que May temia. Apostou e perdeu. Não eliminou a facção, nem venceu as eleições com maioria absoluta. Para se fortalecer no Partido, perdeu no País.

Ao contrário do que seria esperável e desejável, para salvar a sua dignidade, Teresa May não se demitiu. Embarcou muitíssimo fragilizada na incerta aventura de um acordo ou coligação com o DUP (Democratic Unionist Party), um partido da Irlanda do Norte. A rainha, cumprindo o protocolo, concedeu-lhe a formação de um novo governo. No regresso de Buckingham Palace, diante da porta no. 10 de Downing Street, Teresa May arvorou um ar firme e decidido como se nada se tivesse passado. Mas algo se passou, e muito importante: a expressão hard Brexit desapareceu da sua boca, substituída pela promessa de uma negociação proveitosa e amigável com a UE… conforme o eleitorado impôs para já. O espantoso aumento da votação nos trabalhistas não significa o milagroso nascimento de uma súbita confiança em Corbyn, significa o desejo de reforçar a influência do segundo maior partido britânico, comprometido com o remain in Europe.

Para cúmulo da ironia, Teresa May nunca como agora esteve tão condicionada pela facção tory de direita radical e soberanista que reclama um hard Brexit. Quanto tempo de poder terá a primeira ministra ainda pela frente ? Em larga medida, o tempo que a facção consentir.