1. “Uma Nossa Senhora…? Mas…”, e a interrogação normalmente sumia-se no espanto de alguns dos meus interlocutores, artistas plásticos. Uns conhecia, com outros nem uma palavra tinha trocado. Crentes e não crentes, católicos ou ateus, indiferentes ou agnósticos, muitos deles corresponderam à chamada, outros, muito cordialmente aliás, entenderam não o fazer. Um ano depois, há agora vinte e cinco obras no espaço expositivo da já (e tão belamente) restaurada igreja da Conceição Velha, celebrando a passagem dos trezentos anos do Patriarcado de Lisboa. São vinte e cinco distintíssimas, diversíssimas e algumas fortíssimas representações da “Mater Dei” (assim se chama a exposição), reeditando esse diálogo quase ininterrupto entre a arte e o sagrado, com Maria como intérprete.

A criação de Rui Chafes para a exposição Mater Dei

A criação de Rui Chafes para a exposição “Mater Dei”

Desde tempos imemoriais que ela é referência maior na representação do sagrado na história da cultura ocidental, são incontáveis e infindáveis as formas e modos como pintores e escultores a deram a ver ao longo do tempo. Aqui também. É justamente nessa “originalidade” e nessa diversidade – e na força como elas se exprimem – que residirá certamente um dos motivos de maior interesse desta ideia de celebrar assim, uma data invulgar da Igreja portuguesa: com um olhar muito contemporâneo sobre uma história muito antiga, passada com a Mãe de Cristo.

Para isso muito concorreu a competência e o saber de Maria da Graça Carmona e Costa (da Fundação com o mesmo nome e galeria Giefarte) que, juntando-se ao Padre Mário Rui Pedras, Reitor da Conceição Velha, e a Francisco Noronha Andrade, promotores da iniciativa, lhe conferiu uma “segurança” artística e plástica, num excelente ambiente de confiança pessoal e profissional que durou muitos meses.

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No verão passado, Manuel Costa Cabral também ele artista plástico, aceitou o convite para “dar a ver” a exposição. Fê-lo com uma coerência de louvar em tamanha diversidade. Mas o que nos é dado a ver — artisticamente, culturalmente, e, para quem quiser, espiritualmente – é bom de ver. Como o será, não se duvida, na sua próxima morada: a sala de exposições do Santuário de Fátima, entre Maio e Outubro de 2017.

2. Trezentos anos. A data impressiona. A história remonta a D. João V, rei de grandezas e de piedade. Gostava de umas e praticava a outra. Um dia o Papa Clemente XI faz-lhe um “instante apelo”: que enviasse uma armada para travar o avanço turco no mar Mediterrâneo. O monarca português acede e sai-se a contento o que o leva a redobrar o seu (forte) empenho na obtenção de um Patriarcado para Lisboa. Após laboriosas e longas negociações a 17 de Novembro de 1716, a bula papal “In supremo apostolatus solio”, criava o Patriarcado de Lisboa, uma “concessão inédita” nas palavras do actual Patriarca Manuel Clemente: “tratou-se de acontecimento, tão eclesial como régio, em que D. João V se implicou ativamente, como em tudo o que combinasse o prestígio da monarquia e a piedade pessoal, que nunca lhe faltou”, recordou em Julho deste ano, numa conferencia na Academia das Ciências.

Três séculos depois Lisboa e a sua diocese celebram a data e festejam o seu Patriarca.

Com razão. Mas fazem-no de várias maneiras, associando ao sentido religioso da efeméride algumas (vibrantes) manifestações culturais. D. Manuel Clemente quer a Igreja que serve não dissociada de uma cultura o mais plural possível. Evoquei acima a exposição Mater Dei, mas há — e tem havido — outras iniciativas. Escolho uma delas, um livro — “Joga-se aqui o essencial” (Assírio e Alvim) — do mesmíssimo D. Manuel, alguém que para além de nos interpretar Deus, pensa muita bem os portugueses, a identidade nacional, a cultura, a história, o mundo. O historiador que também é nunca tem um olhar momentâneo sobre o presente, antes o contextualizando com um sentido histórico — para ele o presente é sempre o motivo porque chegamos até aqui – o que faz dos seus escritos multifacetadas e riquíssimas viagens espirituais e culturais.

Esta recolha de textos refere-se apenas ao seu tempo de Patriarca de Lisboa, começando logo por ser interessante constatar quão profícua e vária tem sido a sua intervenção em altares, palcos, universidades e outros fóruns. Incansável verbo, luminoso verbo. Comum ao teólogo, ao historiador, ao pastor, ao homem de cultura. Ao homem de bem.

A acrescentar a isto que não é pouco e nos dias que correm é indispensável, sublinho ainda (e como não?) o posfácio de António Araújo.

Araújo revela-se-nos como um dos melhores “tradutores” da mente e do espírito do Patriarca de Lisboa aliando á sua notável erudição a forma como observa, relaciona e depois discorre sobre as intervenções do Patriarca, ao longo dos últimos anos. A ler, um e outro, absolutamente.

3. Piedade com Lisboa Patriarcal, grandeza com Mafra. A obra joanina mais impressiva, quase demencialmente impressiva, comemora também este ano três séculos sobre o lançamento da primeira pedra da sua construção. É vasto e sedutor o programa -já iniciado – que assinala o tricentenário e ainda bem porque tudo ali é diferente e singular: na desmesura e nalgumas das suas obras primas: a biblioteca histórica, os dois carrilhões igualmente desmedidos, os seis órgãos de tubos (construídos para tocar em conjunto, em diálogo uns com os outros, o que lhes confere a exclusividade de caso “único” nas restantes catedrais e basílicas do mundo), um palácio, um antigo convento, um antigo hospital, uma tapada murada, frondosíssima e talvez fabulosa. Inigualável património, terão os portugueses disso consciência?

4. De vez em quando vou a Mafra ouvir os seis órgãos. É quase irreal, naquele marmóreo e imenso espaço ouvi-los a “conversar” uns com os outros, diante do silêncio siderado da basílica esgotada. Foi lá que numa noite de chuva e vento uivante assisti há dias à estreia mundial de uma missa para três coros e seis órgãos de autoria desconhecida, cujo manuscrito se encontrava na Biblioteca Nacional. Embora o documento estivesse inventariado, o organista João Vaz – doutorado em Música e Musicologia, titular do órgão histórico de S. Vicente de Fora e “autor” da concepção geral deste concerto — apercebeu-se, durante os seus estudos de doutoramento, que o manuscrito estava erradamente atribuído a um português (Frei José Marques e Silva), supondo ele tratar-se de um compositor italiano, de passagem por Portugal no final do século XVIII.

“Até agora, ainda não consegui porém identificar o autor”, explicou-me nessa mesma noite o próprio João Vaz, após ter regido o conjunto dos seis órgãos enquanto também tocava num deles, o do Evangelho.

“Desde há muito que tinha o desejo de ‘ressuscitar’ esta obra, até porque a colocação dos três coros e a distribuição dos seis órgãos está claramente indicada na partitura. Por questões orçamentais, só agora consegui que o projecto fosse abraçado pelo Palácio Nacional, numa decisão tomada no inicio deste ano.

Fiquei ainda a saber que a transcrição do manuscrito (“o maior trabalho”) levou meses, que foi também preciso transcrever o cantochão, preparar todos os materiais para o coro e para os órgãos e claro…ensaiar. Foram seis ensaios, quatro deles já em Mafra. Uma espécie de epopeia.

“Foi uma novidade para nós realizar um concerto com três coros, e muito interessante ter o coro distribuído por espaços diferentes da igreja. Mas a experiência dos meus colegas organistas, que asseguram habitualmente os concertos mensais a seis órgãos e o profissionalismo do grupo Voces Caelestes e de Sérgio Fontão, seu director, permitiu levar a cabo a tarefa.”

E a missa a bom porto, digo eu. Mas como os últimos são os primeiros, quem leva Mafra ao melhor porto é o seu director e responsável maior, Mário Pereira. Não é a primeira vez que o constato, nem a última que o direi. Talvez até nem fosse preciso, os resultados estão aí, á vista desarmada: casas cheias, entusiasmo, interesse. Mas como em Portugal se inveja mais do que se reconhece (o êxito ou o talento), gosto de dizer que gostei. E de reconhecer o excelente (e ciclópico) trabalho do “dono da casa”.