“Devia ser deitado, com os pés e mãos amarrados, às portas de Deli, e depois esmagado por um enorme elefante com o novo Vice-Rei sentado em cima.” Não, quem o disse, ao contrário do que seríamos naturalmente levados a pensar, não foi Donald Trump, referindo-se a Bill Clinton, Rui Tavares ou Francisco Louçã. Foi Winston Leonard Spencer-Churchill, e a pessoa imaginada debaixo da pesada pata do elefante era Gandhi.

Não quero, obviamente, fazer qualquer comparação geral entre Churchill e Trump, literalmente incomparáveis, ou manifestar intensa simpatia pela personalidade, grandemente equívoca, de Gandhi. O meu ponto é outro, fácil de ver. O excesso verbal acontece aqui e ali, mesmo entre os melhores, como Churchill (vários outros exemplos dele poderiam ser dados), e não define por inteiro o homem. Uma verdade que tendemos perigosamente a esquecer e cujo esquecimento perturba o juízo político. No caso de Trump, uma frase ou outra convenientemente seleccionada faz dele, num piscar de olhos, um “fascista”. E as reacções, em consequência, não tardam. Mariana Mortágua, por exemplo, declarou a sua intenção de dormir durante todo o tempo da sua presidência, ou, em alternativa, de emigrar para outro planeta. Francamente, acho um exagero e espero que a ideia lhe passe. Pablo Iglesias, embora não menos horrorizado, não concebeu soluções tão radicais. Uma pena, no caso, esta prudência.

Uma história política do nosso tempo deveria conter obrigatoriamente um extenso capítulo dedicado à questão da linguagem, mais precisamente ao modo como toda a realidade política parece, nos dias que correm, dela depender até ao mais ínfimo detalhe. Não é, é claro, que a linguagem utilizada pelos políticos não seja importante. Apesar de tudo, é o meio mais imediato, embora longe de fiável, de sabermos o que lhes passa pela cabeça. O problema está no grau de atenção que lhe é dedicado. Ora, nos tempos presentes a atenção é desproporcionada e o cuidado na sua vigilância roça o policial. Não: é mesmo policial.

Sobretudo, tal atenção distrai muitas vezes do essencial e, quando a realidade nos apanha, dão-se grandes surpresas. “Como é que um tipo que fala daquela maneira pode ser Presidente dos Estados Unidos?” Acontece que há coisas que estão para lá da linguagem, e não são poucas. E acontece também que a repetição das frases de Trump, visando a sua demonização, produziu o efeito perverso de, banalizando-as, as esvaziar do seu conteúdo, num caso ou outro eventualmente ofensivo. O exagero de um foi reduzido a um dimensão mais palatável pelo superior, mais sistemático e declaradamente manipulador, exagero dos outros.

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A enorme campanha mediática (televisões e jornais) contra Trump influiu também, aposto, nos erros das sondagens. Que me seja permitido um exercício de sociologia selvagem. A intimidação que a opinião bem-pensante, maciça e generalizada, exerce nos eleitores leva-os, em muitos casos, a dissimularem a sua verdadeira opção. Como a opinião bem-pensante é maioritariamente de esquerda, ou partilha certos costumes da esquerda, os votos da direita tendem, em consequência, a ser mais do que aqueles que as sondagens indicam. Por mim, na última semana da campanha nos Estados Unidos, dada a diferença entre Hillary Clinton e Trump ser relativamente pequena, a verosimilhança da eleição de Trump pareceu-me efectiva. O mundo que escapa à redoma mediática e que se recusa a ser por ela induzido, tinha, de uma maneira ou outra, de se manifestar. Como se manifestou, de facto.

Restam várias questões. A do populismo, por exemplo. Não nego que muitos aspectos da campanha de Trump caiam dentro da designação. Mas o conceito é consabidamente equívoco e deixa-se dificilmente definir. Além disso, do mesmo modo que, como dizia há muito um francês esperto cujo nome agora me escapa, a pornografia é o erotismo dos outros, o populismo é um pouco o sucesso popular dos outros. E há, evidentemente, o suposto feminismo de Hillary Clinton, que pareceu, a partir de certa altura, ser o tema exclusivo da sua campanha, pelo menos quando esta não era ocupada por concursos de artistas pop por ela apresentados. Uma estratégia, é clara, votada ao fracasso, porque ofensiva para uma boa parte das mulheres, que certamente não apreciam que o seu voto seja menorizado pela sua determinação exclusiva por uma questão de género. Gente inteligente como Susan Sarandon ou Camille Paglia (que vale sempre a pena ler) disse-o claramente.

Mas voltando a Trump e à linguagem. Ela vai, é certo, mudar, como era inteiramente previsível. Já começou a mudar no discurso de vitória, e esse será doravante o padrão. Na noite das eleições americanas ouvi numa televisão alemã um provérbio muito sábio que existe por aquelas bandas. A comida nunca se come à temperatura a que é cozinhada. A linguagem de Trump vai baixar de temperatura. E, com a linguagem, muito do resto que é verdadeiramente importante.

Claro que nada disso impedirá muita gente, sobretudo fora dos Estados Unidos, a falar, com a costumeira delícia, de “fascismo”. A tontice tem longa vida e a sua filosofia da linguagem também. Mas, em cada uma das suas encarnações particulares, acaba por se extinguir, fazendo transitar o seu entusiástico potencial para objectos novos. Para dar um exemplo lusitano, quem tiver idade para isso lembra-se sem dúvida que, em tempos idos da primitiva AD, Sá Carneiro e Soares Carneiro, e quem neles votasse, eram, sem apelo nem agravo, “fascistas”. Hoje em dia, Sá Carneiro é apresentado, em muitos casos exactamente pelas mesmas pessoas, como o paradigma de uma social-democracia virginal que Passos Coelho teria trocado pela mais rebarbativa das ideologias, um tal de “neoliberalismo”. À sua maneira, acabará por acontecer algo parecido a Donald Trump.