A eleição de Trump não foi só a certidão de óbito do sistema político tradicional, das sondagens e da imprensa; foi também a derrota humilhante dessa espécie rara, tantas vezes sentida como uma espécie de reserva moral das nações: os “artistas”.

Há muito que as estrelas pop tomam posições políticas nos Estados Unidos, mas nunca a coisa tinha atingido tal proporção e veemência. Hillary teve toda a música pop com ela, todos os comediantes, todo o cinema – com a assombrosa excepção de Clint Eastwood. Fizeram-se canções, lançaram-se discos, vídeos potencialmente virais, sketches, levou-se Hillary ao palco diante de estádios em delírio. Lady Gaga, Jennifer Lopez, Beyoncé, Madonna, Jay Z, Alec Baldwin e todo o “Saturday Night Live”, os elencos de “West Wing” e “Empire”, os gigantes Bruce Springsteen e Robert de Niro, Bryan Cranston, George Clooney, Shakira, Pharrell, Kanye West, Alicia Keys, Adele, Miley Cyrus, Katy Perry, Elton John, Paul Auster, Jeff Koons, Cindy Sherman, Meryl Streep, Julianne Moore… You name it. Da mais cara cultura pop ao gueto, dos ídolos juvenis aos veteranos, brancos, negros, latinos, ídolos masculinos e femininos, não houve artista que não declarasse: I’m with her. “Estou com ela”. Não era por amor, mas era o que tinha de ser. Não era ser-se pró-Hillary; era ser-se anti-Trump. Teriam apoiado uma planta, um peixinho de aquário, um insuflável, o que quer que fosse que estivesse do outro lado da corrida.

Só na ressaca de terramotos e tsunamis estávamos habituados a ver algo desta dimensão. Até Bush tinha alguns apoios. Até a Guerra do Iraque. Trump foi tratado como a fome em África, uma doença, uma calamidade natural. Juntou-se-lhes o endorsement de jornais e revistas históricos que nunca, até hoje, tinham tomado posição pública numa eleição. America’s finest – os melhores de uma sociedade unidos por uma causa: não deixar alguém como Donald Trump chegar ao lugar que fizesse dele o homem mais poderoso e, desde logo, perigoso, do mundo.

Não serviu de absolutamente nada. Metade da América fez orelhas moucas a tudo isto. Terá dito, lá com os seus botões: sim, sim, gosto muito de te ver na televisão, de ouvir as tuas músicas, de ver os teus filmes, de ler os teus livros, acho-te brilhante, genial, gritaria histericamente por ti, tirava uma selfie contigo, até te fazia um filho – mas isto não é nada contigo. Isto é a sério, não leves a mal. Vai lá cantar, escrever, fazer filmes – eu vou continuar a aplaudir. A pôr likes. Mas isto agora – desculpa – são cá coisas minhas.

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Como foi que chegámos a este ponto? Este ponto – que ninguém se iluda – que está longe de ser só americano; passa-se exactamente o mesmo, a velocidades diferentes, na Europa. Como é que metade dos Estados Unidos da América se passou a rever, ou pelo menos, a não ficar incomodado, com o discurso xenófobo, racista, machista, irresponsável, doentio, incendiário, superficial e completamente estúpido de Donald Trump? Se este representa o absoluto contrário da civilização que construímos e que dizemos querer defender? Como é que estão com Le Pen? E com Farage? Encolhendo os ombros perante os abusos da Rússia? A desgraça da Síria? Se morrem mais mil ou menos mil refugiados à fome ou afogados? Donde é que saíram – ou já nos esquecemos deles? – os milhares de ocidentais de classe média que se foram alistar no ISIS?

Não foram só os políticos que deixaram de chegar às pessoas. Pelos vistos, já nem os artistas chegam – e isso, não me pergunte porquê, parece-me muito mais grave. Talvez porque os políticos mereceram e os artistas não. Mas será que construímos um sistema mediático tão entretido com ele mesmo que não reparou que metade da plateia deixou a sala? E, porventura, há muito tempo?

O Ocidente já não acreditava em Deus. Foi, como se vê, deixando de acreditar em Kennedys e Mandelas. Se já nem no Bruce Springsteen acredita, acredita em quê?

Tantos anos de canções e cinema a ensinarem-nos um código onde alguém como Trump seria sempre o mau, a dado momento teria tudo para ganhar o jogo, mas, de repente, era vencido pelo herói e castigado pelo mundo.

Que se passou, América? Foi por falta de herói?

Parece que precisamos de deitar tudo abaixo e começar de novo.

Oxalá não seja à força.

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).