O título desta crónica também podia ser TTIP, orgulho e preconceito, respigando o nome da famosa obra de Jane Austen.

Orgulho, porque a atitude contra o novo tratado espelha a desmesurada pretensão da bondade do isolamento europeu. Preconceito, porque nesta crítica estamos perante uma visão aristocrática, estatista, conservadora que, infelizmente volta hoje a juntar, quer a extrema-esquerda quer a extrema-direita europeias em torno deste tema. Preconceito, ainda, contra a economia de mercado, contra o comércio livre, raiz e fundamento das sociedades demo-liberais prevalecentes em todo o ocidente.

Orgulho e preconceito que clamam, assim, pela recorrente nostalgia de uma idade de ouro, em que o trabalho e o comércio, sementes da malvada e ávida burguesia, não tinham ainda um estatuto respeitável e onde o isolamento territorial, o muro, a cerca, o castelo, e a protecção da fronteira, garantiam a ilusão da segurança colectiva.

Acabei, todavia, por optar pelo título TTIP: demagogia e bom senso, ainda com sabor a Austen, porque me parece ser o mais adequado para descrever o ponto da presente discussão: demagogia dos que estão contra; bom senso dos que estão a favor.

Vejamos, em síntese, o que está realmente em questão.

O Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, mais conhecido como TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership) ou TAFTA (Trans-Atlantic Free Trade Agreement), entre os Estados Unidos da América e a União Europeia, apresenta-se sob a forma de tratado internacional e visa, essencialmente, promover o comércio, os serviços e o investimento directo entre os países proponentes em termos semelhantes à parceria já negociada e aprovada, (aguardando apenas ratificação do Congresso), entre os mesmos Estados Unidos da América e vários países da Ásia (TTP- Trans-Pacific Partnership).

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Ressalte-se que, nos termos das negociações, se pretende rever e reduzir as clássicas tarifas e barreiras técnicas, mas sobretudo, colocar num novo patamar de harmonização e a cooperação matérias como: os direitos de propriedade intelectual, os padrões de protecção ambiental, a protecção de dados no âmbito do comércio e serviços electrónicos ou, ainda, um mais amplo acesso aos mercados públicos (public procurement) de cada uma das duas zonas económicas.

Estamos, pois, perante um amplo e complexo quadro de negociação que, como se compreende, está longe do consenso final. Trata-se de um vasto conjunto de temas, com várias frentes de potencial atrito, tendo em conta as dimensões geoestratégicas, políticas, económicas, e até culturais, em jogo. É um quadro negocial que procura ir mais além do que já foi, entretanto, alcançado no seio da OMC — Organização Mundial do Comércio, entre os diversos países agora envolvidos.

Uma coisa é, porém, já certa. Os que são contra, criticando a falta de transparência das negociações, os riscos de desprotecção ambiental ou laboral, bem como a pretensa ameaça à cultura e ao modelo social europeu, cavalgam o campo da demagogia.

É um retorno das ideologias, e o antiamericanismo é uma delas. Temos tido o pacifismo, o ambientalismo, o alter mundialismo e agora até começamos a ter o vegetarianismo e o animalismo. Ser, por princípio, contra o TTIP, sem considerar liminarmente as suas potenciais vantagens, é caminhar nas mesmas águas. Ou seja, o novo avatar de todos estes ismos, parece ser agora a luta contra o TTIP.

É este caldo ideológico anti-americano que regressa, ainda que com a capa ou disfarçada da defesa dos verdadeiros interesses europeus ou do seu antigo quintal africano. Tal já te tinha visto no período da guerra do Vietname, da guerra de ex-Jugoslávia e, mais recentemente, a propósito do Afeganistão ou do Iraque.

Não deixa, aliás, de ser curioso ter aparecido a Greenpeace a dar sinal de si, ao falar do segredo das negociações, como se todas as negociações entre Estados não tivessem, necessariamente, os seus procedimentos obrigatoriamente confidenciais (já agora também seria bom, que os habituais arautos da híper transparência divulgassem as atas das suas reuniões internas, dos seus encontros, ligações, fontes de financiamento, etc.).

Sempre a mesma dúplice atitude. Contra Guantánamo, mas sem uma palavra sobre as prisões em Cuba ou na Coreia do Norte. A favor da igualdade de género, mas sem uma palavra sobre a discriminação em África ou no mundo muçulmano. Contra a precariedade do modelo laboral americano, mas sem uma palavra contra a exploração laboral na China. Enfim, a mesma incoerência e demagogia de sempre.

Sucede que a Europa só cresceu, só progrediu, só se afirmou como a civilização da modernidade porque se abriu ao exterior, porque estendeu a produção e comércio por esse mundo fora. Se a Europa se volta a fechar numa nova muralha de Adriano, se a Europa volta a construir o seu Rubicão, ainda que imaginário, voltaremos ao tempo de ontem, aos tempos sombrios, do proteccionismo populista e da barbárie autoritária.

E este acordo, esta parceria, é tanto mais importante, precisamente, porque o seu alcance e significado não serão meramente económicos. Irá mais longe e pode representar, no futuro, o que a NATO tem significado deste o pós-guerra: uma verdadeira e sólida âncora para o ocidente e particularmente para a europa face à reconstrução do “arco sino-soviético” ou à “nova rota da seda”. Não nos podemos esquecer que a Europa sempre procurou a sua autonomia e segurança no Atlântico (Começou com os portugueses, a que se seguiram os espanhóis, os holandeses e os ingleses). Foi sempre para ocidente que fizemos mundo, nunca para leste ou para a mainland asiática.

Ora ser contra a globalização económica, financeira e cultural é, para muitas elites europeias, pôr em causa os valores que fundam e sustentam o Ocidente, nomeadamente, a forte ligação aos EUA. Esquecem, facilmente, que foram os EUA que nos salvaram do autoritarismo em duas guerras mundiais, que foram os EUA que nos defenderam da ameaça do totalitarismo comunista ou que nos ajudaram na reconstrução económica através do célebre Plano Marshall.

Não deixa, aliás, de ser curioso, diria perigoso, que partidos ou movimentos que se manifestam contra o TTIP sejam apoiados financeiramente pelo governo russo. Como não deixa de ser estranho e no mínimo paradoxal que sejam aqueles que há uns anos endeusavam Barack Obama e a sua apoteótica eleição presidencial, que agora o criticam severamente por defender a importância reciproca do TTIP (ao contrário, na actual corrida presidencial, tanto Trump como Sanders, comungam de um sentimento anti comércio internacional). Ou seja, a mesma incoerência e demagogia de sempre.

Em suma, se este é o lado da demagogia, resta-nos defender o lado do bom senso: a importância do comércio livre para a paz e o bem-estar da humanidade.

Lembremos que, já no século XVIII, Montesquieu, um dos pais fundadores do nosso actual modelo democrático, defendia a importância do comércio entre os povos para estimular a liberdade e promover a paz. Mais, a importância de tratados como o que agora está em causa, também foi defendida, tanto pelos pais da economia clássica, como Adam Smith ou David Ricardo, quanto por Paul Krugman, guru recente de muitos dos críticos da atual negociação.

É claro que o bom senso também implica ter consciência que esta parceria, como qualquer outra, implica cedências de ambos os lados e terá naturalmente pontos fracos. Ter consciência, ainda, de que a anemia da economia europeia, a que se soma a estagnação secular da economia mundial, incluindo as zonas emergentes, acentuando desigualdades e afetando, sobretudo, os rendimentos do trabalho, não cria o melhor clima para consensos sobre os temas e interesses em presença.

Haja pois bom senso. E, como também aconselha a prudência que lhe está associada, mais vale um acordo difícil, porventura imperfeito que a ausência total de acordo. Pois será a ausência desse acordo, com a consequente conflitualidade das respectivas estratégias económicas dos dois lados do Atlântico que servirá, mais uma vez, os interesses daqueles que sempre quiseram e continuam a querer o enfraquecimento da Europa, do seu modo de vida e dos valores.

Professor universitário