Tratou-se, explicou o autor, de “um apelo veemente para que se faça algo para inverter esta corrida para o abismo em que parecemos lançados e de que, de resto, a emergência dos populismos como uma nova tendência global constitui um sério e preocupante aviso, reiterado com o resultado das eleições americanas”.

Creio que o apelo do ex-Presidente da República é inteiramente pertinente e oportuno. Também me parece muito oportuno o espírito de abertura intelectual com que o apelo de Jorge Sampaio é iniciado:

“[…]Tentar desbravar um caminho de interrogações e perplexidades, que são afinal as de um europeu convicto, que teima em continuar a sê-lo, mas que se confronta com um conjunto de contradições, dilemas e perguntas para as quais as respostas não parecem óbvias nos tempos que correm. Ou seja, e este é o meu ponto de partida, as convicções outrora firmes que me acostumara a assumir como premissas inabaláveis de um europeísmo esclarecido estão hoje, em 2016, algo toldadas pela acumulação de dúvidas nascidas da confrontação com a realidade — o tal reality check, como bem se diz em língua inglesa […]”

Creio que é precisamente este espírito de abertura à confrontação com a realidade que deve presidir ao debate alargado a que Jorge Sampaio apelou — e que José Manuel Fernandes terá sido dos primeiros a aceitar, aqui no Observador. É nesse espírito de abertura dialogante que gostaria de recordar resumidamente algumas hipóteses heterodoxas sobre a comum causa europeísta.

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Em primeiro lugar, subscrevo o sentimento de Jorge Sampaio “de se chegar a casa quando se aterra na Europa”. E subscrevo a sua convicção de que “isto significa, afinal, que a Europa é a partilha de uma casa comum, de um património civilizacional e de valores.”

Gostaria agora de acrescentar que um dos princípios distintivos desse património civilizacional é que ele emergiu como resultado de uma cultura comum, mas não de um plano comum. A cultura comum europeia emergiu ao longo dos séculos e das gerações, em simbiose com larga variedade de arranjos políticos, larga variedade de pólos de decisão política e larga variedade de instituições intermédias e autónomas, que hoje designamos por sociedade civil.

Creio que esta ideia pluralista tem consequências. O pluralismo vê o legado europeu e ocidental como fruto de uma permanente conversação, não como busca monista de um modelo de perfeição (que talvez fizesse sentido nas tradições da Rússia ou da China).

Uma primeira consequência desta perspectiva pluralista pode ser citada a propósito do projecto da moeda única europeia, o euro. Basicamente, numa perspectiva pluralista, o projecto do euro não deve ser identificado com o projecto da União Europeia. Esta deve abrir mais espaço para a inclusão de diferentes escolhas dos estados membros — e diferentes combinações entre essas escolhas.

Uma outra consequência da disposição pluralista é o reconhecimento do Estado-nação enquanto lar da democracia parlamentar e constitucional. Isto claramente contraria a convicção hoje dominante de que o Estado-nação está obsoleto. E contraria enfaticamente a ideia corrente de que o caminho a seguir pela União Europeia terá de ser, ou deverá ser sempre, o de maior integração supranacional. Esta ideia de sempre maior integração supranacional, frequentemente associada à expressão “Mais Europa”, arrisca-se na verdade a produzir como resultado “mais Europa com menos europeus”.

Um outro ponto que vale a pena referir é que na civilização europeia e ocidental existem tradições marítimas e tradições continentais. Nenhuma é perfeita e nenhuma delas deve aspirar à supremacia. O que mais distingue as culturas políticas marítimas, neste caso a atlântica, é a maior facilidade em lidar com a variedade, com uma certa desarrumação, e com a descentralização. Por outras palavras, as culturas políticas marítimas favorecem o pluralismo e naturalmente sentem desconforto com atmosferas monistas associadas a modelos centralizadores.

A preservação da União Europeia, enquanto casa comum das nações europeias, dificilmente será possível sem um entendimento pluralista do projecto europeu, em articulação com a dimensão atlântica. Foi a aliança euro-atlântica que garantiu a paz e a prosperidade na Europa desde o final da II Guerra. Chegou de novo a altura de recordar e defender o pluralismo euro-atlântico contra os sonhos monistas de uniformização — quer continentais, quer eventualmente insulares.