Há uns dias, recebemos a notícia de que duas pessoas, David Crisóstomo e Luís Vargas, criaram um site que, entre muitas outras funcionalidades já desenvolvidas e a desenvolver, permite saber o sentido de voto de cada deputado em cada diploma que tenha sido discutido na Assembleia da República. Custa a acreditar que esta informação não fosse pública, mas, na verdade, não era mesmo. Ou, se preferirem, era praticamente inacessível a quem não tivesse assistido às votações na Assembleia. Sem eufemismos, o site da Assembleia da República é uma realíssima bosta. Depois de algumas sugestões e protestos nas redes sociais, David Crisóstomo e Luís Vargas lançaram mãos à obra. Agora, se quiser saber quem votou em quê, basta-lhe ir a http://hemiciclo.pt/.

Uma das principais dificuldades com que Crisóstomo e Vargas tiveram de lidar foi mesmo a de erros nos registos, o que os obrigou, metaforicamente, a fazer pesca à linha. Em baixo, mostro uma foto, que foi postada no Facebook de uma amiga que acompanhou o projecto, pedindo ajuda para identificar aquela mulher vestida de vermelho (agora imaginem que se tratava de um homem com fato cinzento e gravata azul escura).

O mural é privado, pelo que não posso aqui partilhar, mas foram trocadas várias dezenas (literalmente) de comentários só para conseguir identificar uma deputada, numa determinada votação que até foi bastante mediática (votação na generalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo). Noutros casos, contactaram directamente outros deputados que estavam presentes no momento da votação. Num desses comentários, podemos ler um desabafo de David Crisóstomo: “O que me está a irritar é que se é esta dificuldade para identificar numa votação que até foi bem mediática e não de há muito tempo, vou já acender uma vela pela minha alma para quando me meter à procura de nomes destes da X e IX legislaturas”.

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Todo este trabalho foi gratuito. Não foi o resultado de uma bolsa paga pela FCT, não resultou de um subsídio, foi apenas o produto de muito trabalho e de sentido de serviço público.

Imagino que muitos se questionem sobre o real impacto de uma ferramenta como esta. A pergunta é legítima e a resposta pode ser surpreendente pela positiva. Há uns dias, Pedro Magalhães, numa conferência na European Consortium for Political Research, em Oslo, apresentou um trabalho em co-autoria comigo e com Francisco Veiga.

Nesse trabalho, estimamos alguns dos efeitos de aumentos de transparência nas autarquias locais. Para tal, recorremos a um Índice de Transparência Municipal, desenvolvido por vários investigadores e publicado na Public Management Review, uma boa revista científica da área de Administração Pública. Este índice (com base em 76 indicadores) mede qualidade da informação colocada online sobre o funcionamento e orçamento de cada câmara. Recorremos também a vários indicadores relevantes sobre as políticas e qualidade de vida nos municípios, como as contas da autarquia, a sua repartição entre despesas correntes e de investimento, a performance dos estudantes, etc. Finalmente, estimamos como o indicador de transparência interage com os restantes indicadores influenciando o comportamento dos eleitores no momento do voto.

De acordo com os nossos resultados, que ainda estão sujeitos a validação científica, quanto mais transparentes são os municípios mais os eleitores valorizam políticas que têm efeito a longo prazo e menos se preocupam com a espuma dos dias das conjunturas económicas.

Em 2016, os opositores do actual Governo andaram a lançar foguetes com a má performance da economia nacional. Em 2017, vemos os apoiantes do Governo a fazer a festa. Pode ser que, em 2018, se deixe de discutir se o ponto percentual está mais para a esquerda ou para a direita e se passe a discutir assuntos importantes e decisivos para o nosso futuro, como as chocantes taxas de pobreza infantil de que nos lembrou ontem Fernando Alexandre. Esforços como os de David Crisóstomo e Luís Vargas, ao tornarem a Assembleia mais transparente, são passos importantes neste sentido.