Vai o homem na rua, incógnito. Vai incógnito o homem na rua. Incógnito, vai o homem na rua.

Há frases assim, inócuas, aparentemente triviais, que nos enganam. Enganam porque, na verdade, o homem hoje não anda incógnito em lado algum. Vigiam-no drones, câmaras de vigilância, microfones parabólicos direccionais. “You will never walk alone” é um famoso cântico de um clube de futebol inglês: nunca mais andarás sozinho, traduzo, sentindo a ironia da frase, pois na verdade já raramente andamos sozinhos no dia a dia.

Por exemplo, o leitor passeou o dia inteiro, incógnito, a gozar as delícias de uma tranquila privacidade. Ao chegar a casa, a mulher, ou o marido, pede-lhe o telemóvel, acede a “opções”, “privacidade” e “locais frequentes” ou (android) “histórico de localizações”; e o seu passeio incógnito – privado – (tantas palavras em vias de extinção), surge escarrapachado no pequeno ecrã, com a indicação de locais por onde passou e a que horas (a boa notícia é que pode ser desactivado). Ah, e se viajarmos de avião, no futuro, uma mão cheia de informações sobre quem somos, de onde vimos, o que fazemos e etcetera, passará a estar disponível e a cores para as autoridades nacionais. Se fizer compras, o obrigatório NIF colocá-lo-á no local, para sempre situado, localizado, caracterizado no seu perfil de consumidor.

E a propósito de telemóveis: fala ao telemóvel a mulher, tranquilamente. Tranquilamente, a mulher fala ao telemóvel. A mulher fala tranquilamente ao telemóvel.

Está errado o advérbio: ninguém hoje fala ao telemóvel tranquilamente. Falamos com precaução, não vá alguém estar a escutar. Porque alguém pode escutar, se não a nós, a quem fala connosco. E se não for hoje, é amanhã. “E por que razão haviam de me escutar?”. “Porque podem”. Os telemóveis mudaram a nossa forma de vida de modo dramático. Com o seu advento, passámos a perguntar o impensável (até então): “onde estás?”. E controlamos a vida dos outros e somos controlados por eles, num jogo arriscado e permanente que riscou do nosso vocabulário a palavra “tranquilidade”. “Onde estás?”, “porque não atendeste?”, “que número é este?”. Produto exclusivo da imaginação dos escritores de ficção científica ainda há 40 anos, a comunicação (pessoal) sem fios age directamente sobre a nossa vida privada, influencia e até molda o nosso comportamento, e com isso a nossa identidade. Modifica-nos. Somos pessoas diferentes graças ao telemóvel, ainda que guardemos o mesmo nome.

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Joga jogos o miúdo, inocentes. Inocentes, o miúdo joga jogos. O miúdo joga inocentes jogos. Não joga Monopólio, nem Risco, nem sequer às cartas. Não joga à mesa, sentado com os pais ou com amigos. Joga, em plataformas como a playstation, o wii, a xbox, ou no computador, ou em smartphones e iPads, jogos electrónicos como final fantasy, tetris, grand theft auto, call of duty, assassin’s creed, mortal kombat and so on. Inocentes? No ecrã, desde muito novas, as crianças – sob benévola supervisão –,aprendem a matar, roubar, atropelar, simular, até a ter sexo. Virtualmente, claro, nada que lhes faça muito mal.

A história é conhecida: em 2003, William e Joshua Buckner, de 16 e 14 anos respectivamente, desceram a uma autoestrada no Tennessee, EUA, e dispararam uma calibre 22 contra os automóveis que passavam. Mataram uma pessoa, feriram outra gravemente. Os irmãos confessaram ter imitado o seu videojogo favorito: grand theft auto. Não foi a primeira vez que o jogo, em que os jogadores fazem parte de gangues, roubam carros, assaltam bancos, matam pessoas (tudo virtualmente, claro) surgiu associado a actos criminosos. Mas sobre os efeitos dos jogos electrónicos, a divisão de opiniões não podia ser maior:

Os jogos “viciam as crianças (e não só)”. Os jogos “impedem que os nossos filhos interajam com os amigos”, “não estudam nem fazem os trabalhos de casa”, “passam horas em frente ao computador ou à consola”. Mas os jogos, responde Alguém, “divertem”; e “aumentam a percepção dos miúdos para a vida real”. Responde o mal-disposto que a maioria é “altamente violenta”. “Aumentam o raciocínio lógico, a criatividade e até os reflexos dos mais novos”, contrapõe Alguém. E o mal-disposto: “entortam a coluna, estragam os olhos, viciam a psique”. “Educam”, de novo Alguém. Em que ficamos? Como diriam os antigos “nem tanto ao mar…”

E há as redes sociais – Facebook, Twitter, YouTube, WhatsApp, Instagram, Pintarest: o meu amigo “postou” na privacidade do seu “face”. Na privacidade do seu “face”, o meu amigo “postou”. “Postou”, o meu amigo, na privacidade do seu “face”. Palavras novas – “postar”, “face” – encaram com desdém vocábulos obsoletos. É que não há no Facebook nada de privado, como tantos homens públicos (ou nem por isso) aprenderam à sua custa. Pelo contrário, o efeito de aceleração das redes sociais, é impressionante: para o bem ou para o mal, a viralidade virtual tornou-se um dos mais importantes fenómenos da nossa época. A história ainda hoje paradigmática do poder e da velocidade das redes tem 3 anos: Justine Sacco, directora de comunicação de uma empresa multinacional, ao embarcar para a África do Sul publicou no twitter a seguinte frase: “Indo para África. Espero não contrair Aids. Brincadeira. Sou branca!”. Os seus 200 seguidores depressa se multiplicaram, a hashtag #JustineSacco invadiu a rede, foi forçada a demitir-se. Justine desculpou-se em comunicado, assumindo vergonha pelo que tinha escrito. Mas o mal estava feito; o virtual não se compadece da humanidade, nem permite retorno.

A internet… sinto arrepios na espinha quando, ao digitar duas letras o ecrã me saúda, “bom dia senhor Paulo”, e ao viajar pela rede sou recebido com saudações amigas de quem me parece conhecer e aos meus hábitos de consumo melhor por vezes do que eu próprio. Cookies, dizem, e um sabor amargo na boca não acompanha o doce da explicação. E nem tenho de ir a lado algum, navegando sem rumo a rede de mil cabeças interpela-me “faça a viagem dos seus sonhos a São Francisco” ou “não perca esta oportunidade”. Cookies, amargos cookies.

Juntem tudo isto num local só. Ou em mais do que um, interligados. Telemóvel de um jovem adolescente pejado de aplicações (apps), redes sociais associadas, quiçá um blog, um iPad e um portátil, tudo ligado. Nada incomum, afinal os telefones portáteis – sobretudo os inteligentes (“smart”) – fazem parte integrante da nossa vida, sociedades e cultura. De todas as culturas, aliás. As nossas jovens gerações são, de resto, nativas desse Mundo virtual que aos mais velhos ainda soa estranho. Alienígena, quase. Alguns desses jovens têm uma relação esquizofrénica com os seus aparelhos: vivem em constante desordem de comportamento, viciados, incapazes de os deixar de lado por um momento que seja. Consultam constantemente o Facebook, o Twitter, em busca de actualizações, fotografias de amigos, gostos e desgostos; vigiam o telemóvel e respondem a todos os sms, estejam no restaurante, a conversar com seres humanos reais, a subir uma calçada. Com cada vez com maior frequência afastam-se do mundo físico, têm dificuldade em separar o virtual do real, eximem-se a responsabilidades que não compreendem. Ansiosos, em stress, reagem com agressividade a conselhos, opiniões alheias – sobretudo de adultos – tornam-se verdadeiramente alheados.

E agora que já todos os leitores me catalogaram na categoria dos antiquados – dos “has been” -, confesso ter dificuldade em viver sem o meu telemóvel; ou sem o Facebook, o blog que criei, o computador e o tablet. Fazem-me falta. Sobre tudo o que para trás ficou, portanto, dois pensamentos rápidos – uma espécie de epítome sobre a crescente transparência com que passeamos os nossos opacos corpos pelo Mundo:

É o preço a pagar pelo bem que nos sabe (o mal que nos faz). E é ainda e sempre, como sempre, uma questão de equilíbrio.