Confesso a minha estupefacção: os muros proliferam na Europa, muros de todos os tipos e formatos, e ninguém parece estranhar.

Muitas vezes não são bem muros, mas barreiras de arame farpado. Paredes de betão, fortificações, obstáculos pontiagudos, redondos, rectangulares. Muros da vergonha.

Muralhas, muros e barreiras sempre o Mundo as construiu. Serviam para barrar o caminho ao inimigo, conhecido, desconhecido, por vezes imaginário. O que nunca impediu o inimigo de as ultrapassar. As muralhas de Tróia, a imaginária, construídas no século 13 a.C. não impediram a destruição da cidade; a muralha de Adriano, a maior da Europa, não impediu as tribos escocesas de descerem sobre a indefesa Britânia.

Muitas outras muralhas foram construídas no continente europeu ao longo dos séculos, de Ston, na Croácia – a proteger Dubrovnik – às Linhas de Torres, perto de Lisboa, conjunto de fortificações erigidas para proteger a capital dos franceses da 3ª invasão. E há, claro, o mais famoso de todos os muros, o de Berlim. Símbolo de divisão, de ignomínia e de estupidez. Os europeus, com a ajuda dos aliados americanos e dos democratas do Mundo, deitaram-no abaixo. Venceram a estupidez, a ignomínia, a divisão. Uma lição simples mas valiosa: o ser humano não foi feito para viver atrás de obstáculos, encolhido contra uma vedação, uma parede, uma longa faixa de arame com picos (também conhecido como farpado).

O ser humano foi feito para ser livre. Para acolher outros seres humanos na sua comunidade, quando em perigo, perseguidos, ou simplesmente em busca de uma vida melhor. Com prudência, moderação e regras, claro, mas sem histeria nem exacerbação nacionalistas.

Ora, nos últimos anos, de súbito, ou talvez nem tanto, muros começaram a erguer-se como cogumelos um pouco por todo o Mundo. O pretexto tem um nome: imigrantes. Tem outro nome: refugiados. E os muros, as barreiras e os obstáculos multiplicaram-se.

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São muitas as versões sobre o número de muros existentes. Segundo a investigadora canadiana Elisabeth Valley, citada pelo Daily Mail, eram 16 no Mundo quando o muro de Berlim veio abaixo; em Agosto de 2015 seriam 65 completos ou em construção. Os professores de ciência política da Califórnia Ron Hassner e Jason Wittenberg, referem que, das 51 barreiras fortificadas construídas no Mundo após a segunda grande guerra, cerca de metade foram-no depois do ano 2000 (artigo no International Security, verão 2015).

Muros. Barreiras. Vedações. Em Melilla. Na fronteira húngaro-serva (com 177 km). Na greco-turca. Um muro em Chipre a dividir cristãos ortodoxos de muçulmanos turcos. Uma barreira de segurança entre Israel e a Palestina, um muro entre a Turquia e a Síria. Uma vedação em arame farpado na fronteira da Índia com o Bangladesh, em construção, com mais de 3.500 km. E outras dezenas, da Europa à Ásia, da fronteira dos EUA com o México a África.

A construção dessas barreiras, assimétricas, físicas, não militarizadas, está a acelerar; a maioria foi edificada por Estados muçulmanos para conter muçulmanos de diferente denominação ou país; a maioria não visa impedir o terrorismo mas fluxos migratórios de países mais pobres; nos últimos anos (no máximo cinco), a maioria foi construída na Europa.

A Europa inventou os muros e acabou com eles, simbolicamente, em 1989. Poderia supor-se que a Europa não voltaria a edificá-los. Nada mais errado, bastaram alguns anos.

O Reino Unido acaba de anunciar que vai construir uma barreira em Pas de Calais, para impedir a progressão dos migrantes e dos refugiados em direcção ao país. “Que fiquem aí, na Europa continental, que nós não somos continente, nem Europa (pelo menos, “essa” Europa)”, parece ser a mensagem britânica.

Mas antes de prosseguir e de me expor ainda mais à ira dos leitores que consideram que os europeus têm de se proteger da ameaça das migrações e do terrorismo que, julgam, “vem à boleia” daquelas, talvez possamos reflectir sobre os efeitos efectivos destas barreiras. Funcionam? São eficazes? Têm consequências negativas?

Há vários estudos e investigação sobre o assunto. No curto prazo, as barreiras funcionam. Estancam momentaneamente a maré alta dos refugiados e dos imigrantes. Mas estes, no seu desespero e por mais barreiras que se lhes oponham, encontram novas rotas, mais difíceis, mais longas, mais perigosas. Morrem aos milhares. E acabam sempre por descobrir o caminho. A construção de barreiras, concluíram os citados Hassner e Wittenberg, tende a ser feita por países mais ricos para impedir os cidadãos dos países mais pobres, seus vizinhos, de entrar. Aumenta o ressentimento e o ódio entre os povos. No curto prazo, o mais rico e bem-sucedido triunfa; no médio e longo prazo, só triunfam a frustração e o espírito de vingança. Os dantes vizinhos depressa se transformam nos odiados “Outros”.

Daí à guerra, seja sob a forma tradicional, seja sob a de terrorismo, vai um passo.

O Mundo está cada vez mais interdependente, disse Obama: “Construir muralhas não mudará essa realidade (…). Se as últimas duas décadas nos ensinaram alguma coisa foi que os maiores desafios que enfrentamos não se resolvem com isolamento”. Pensem na ameaça terrorista, na economia de mercado, pensem no clima, pensem na extrema pobreza, pensem na doença: o homem pode muito mais quando funciona em conjunto, quando se abre ao Outro, quando coopera. Quando abate muros, não quando os constrói.

A Europa terá em breve mais barreiras físicas nas fronteiras nacionais do que durante a guerra fria, escreveu em Janeiro deste ano o Economist. A previsão da revista terá já sido cumprida. Constroem-se muros que, a este ritmo, envolverão extensões de fronteira cada vez maiores; um dia, quiçá, países inteiros estarão cercados por barreiras que os isolarão por completo dos vizinhos. Portas fortificadas, postigos minúsculos, videovigilância, drones e sistemas de armas automáticos protegerão o território assim feito autarcia.

Um dia, Portugal pode aspirar a ter um muro assim: completado o desenho da raia de Caminha a Vila Real de Santo António, ficará a faltar fazer o mesmo na fronteira marítima, protegendo o país dos monstros que chegam dos Oceanos. Nesse dia, estaremos seguros.

Voltarei ao assunto, demasiado importante para ser deixado em paz. Três coisas parecem certas: há um efeito mimético entre os Estados, que se copiam uns aos outros, com aparente entusiasmo, como que a ver quem constrói o muro mais alto (ou mais longo, ou mais farpado). A longo prazo, eles nada resolvem. E a Europa da União falhou rotundamente nas suas políticas de migração e asilo, mais por culpa dos decisores nacionais do que dos europeus.

Mas é sempre triste ver uma civilização retrogradar. A Europa inventou os muros, a Europa deitou abaixo os muros, na Europa crescem novos muros sobre as ruínas da barbárie das grandes guerras civis europeias.

Não foi para isto que os filósofos, os poetas, os políticos e os artistas do continente inventaram a democracia, a decência e os direitos fundamentais.