Preservar as políticas sociais nos domínios da educação, da segurança social e da saúde, o chamado Estado Social, é o maior desafio à democracia portuguesa. É indispensável construir um entendimento alargado entre as forças políticas com representação parlamentar e a sociedade em geral, que confira estabilidade, previsibilidade e viabilidade à manutenção daqueles preceitos constitucionais.

Ao celebrar os 40 anos da Constituição Portuguesa, o sector da saúde salta à vista como aquele em que a promessa constitucional melhor se cumpriu, com evidentes ganhos para a população e um alargado consenso na sociedade portuguesa quanto à importância de um serviço nacional de saúde, de acesso universal e solidariamente financiado pelos impostos dos portugueses.

A melhoria contínua dos indicadores de saúde ocorrida neste período, é notável. A taxa de mortalidade infantil é um caso de sucesso internacional (2.85 por mil nados vivos, em 2015); a taxa de mortalidade materna coloca Portugal na linha da frente em termos mundiais (8 por 100 mil); a esperança média de vida, calculada quer à nascença como aos 65 anos de idade, continua a sua trajectória positiva (H 76,91 M 82,79).

Estes resultados, não sendo estranhos à melhoria de um alargado número de determinantes ligados ao desenvolvimento da sociedade portuguesa, são, em grande parte, função do investimento realizado na melhoria da oferta de cuidados de saúde, através de mais e melhores infraestruturas, recursos humanos qualificados e do enorme impulso ocorrido no conhecimento especifico das ciências da vida.

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Como estamos em 2016?

Como não há bela sem senão, a questão de hoje, é saber por quanto tempo será possível suportar o nível de investimento público necessário à preservação das actuais políticas sociais.

O peso do “estado social” no total da despesa pública, passou, nos últimos 20 anos, de cerca de 63%, em 1996, para aproximadamente 80%, em 2015. Isto é, quando somamos a execução orçamental das componentes de despesa pública atribuídas aos programas de educação, saúde e segurança social (o estado social) verificamos o seu peso crescente na estrutura da despesa pública nacional, num ritmo de crescimento muito para além do crescimento nominal do produto nacional (PIB).

Em escassas duas décadas, de 1996 para 2015, observamos que a despesa pública em saúde cresceu para mais do dobro (122 %) e a Segurança Social para quatro vezes mais. Entre 1985 e 2012 a despesa do Estado em saúde aumentou de 3% para 6,2% do PIB.

A longo prazo, com este ritmo de crescimento, o peso do estado social na despesa pública revela uma total impossibilidade matemática, pois não será possível manter o crescimento da despesa anual a um ritmo superior ao crescimento do próprio PIB.

No caso específico da segurança social, a situação é especialmente preocupante pois o montante das respectivas contribuições sobre o trabalho não se mostra suficiente para fazer face aos compromissos correntes nem futuros. A diminuição permanente entre a proporção do número de trabalhadores activos versus o crescente número de pensionistas e reformados, tornará impossível a sua sustentabilidade num futuro que será muito próximo. A melhor demonstração de que algo tem de ser feito para protecção das gerações futuras é bastante perceptivel no quadro seguinte, em que se pode observar que dos 5 trabalhadores activos por cada pensionista existente em 1974, não temos hoje mais que 1,5 activos por pensionista:

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Os significativos aumentos da despesa pública têm sido acomodados, pelo Estado, através de dois meios principais: o aumento de impostos e a expansão da dívida pública. Este modelo não tem futuro, como bem se compreende.

“Desde 1974, que o saldo entre receitas e despesas do Estado apresenta sempre défice. Em 2001, Portugal seria o primeiro país da zona euro a violar o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) ao ter um défice orçamental superior a 3%, e o único a fazê-lo de forma ininterrupta até 2014”. [“Crise e castigo”, da autoria de Fernando Alexandre, Luís Aguiar-Conraria e Pedro Bação. Edição FFMS, 2016]

O financiamento das politicas sociais está, pois, em sério risco. Os impostos cobrados aos portugueses não poderão aumentar infinitamente. A dívida pública não poderá continuar a crescer ou não haverá quem a financie. Qualquer agravamento no custo dos juros revelará enormes dificuldades no seu pagamento atempado. O custo dos juros da dívida representam, já hoje, o equivalente ao orçamento anual do sector da saúde. A demografia mostra, pelo seu lado, que haverá cada vez menos contribuintes a financiar os apoios sociais de um número crescente de beneficiários.

As politicas sociais enfrentam, em consequência, um elevado risco de sustentabilidade se, sobre as mesmas, não houver um consenso alargado entre os diferentes actores sociais e políticos quanto à eficaz afectação futura dos escassos recursos de que dispomos. Não será, infelizmente, suficiente o optimismo.

Ocupemo-nos apenas do caso da saúde, ainda que não seja possível isolar o esforço requerido neste sector do conjunto das responsabilidades que serão exigidas a gerações futuras para manter o actual desenho das políticas públicas no domínio social, evitando uma pesada restrição ao seu acesso ou, no caso pior, a sua falência descontrolada e consequente alarme social.

A saúde em Portugal

Temos convivido relativamente bem com um Sistema de Saúde que inclui duas experiências públicas distintas: o Serviço Nacional de Saúde e a ADSE. Uma e outra complementam a cobertura do universo da população portuguesa a cuidados de saúde. Com maior ou menor facilidade no acesso, ambas as soluções têm permitido uma resposta muito positiva nos indicadores de saúde da população, ao longo das últimas quase quatro décadas.

Os últimos anos mostraram que era possível capturar sucessivos aumentos de produtividade mas estamos longe de alcançar os níveis de eficiência potencial que muitos estudos sobre o sector têm revelado.

O problema das listas de espera para cirurgia e, principalmente, os tempos de espera para consultas de especialidade continuam a ser um tema muito crítico no Serviço Nacional de Saúde, em confronto com um acesso mais eficaz para os beneficiários da ADSE. O custo padrão do doente tratado revela também enormes assimetrias, a nível regional e na comparação entre unidades de saúde. Apesar de uma rede bastante capilar na oferta de cuidados primários em todo o País, persiste um elevado número de pessoas sem fácil acesso ao Médico de Família, uma dor de cabeça para sucessivos Ministros da Saúde. A ponderação das limitações financeiras continua a obrigar a atrasar a inovação no medicamento e em outros tecnologias. O custo anual por beneficiário da ADSE é inferior ao custo médio do utente do SNS, quando se compara apenas a efectiva prestação de cuidados, explicando-se esta diferença pela rigidez dos custos fixos da capacidade instalada do SNS e pela ineficiência de algumas unidades.

O problema requer novas soluções. Focar todo o sistema na resposta ao cidadão, corrigindo uma organização em que a centralidade se encontra ainda, erradamente, na instituição é, porventura, uma das prioridades absolutas para que se valorize a pessoa e se alcancem melhores níveis de eficiência na simplificação burocrática e no combate sem tréguas aos custos desnecessários.

A convergência dos sistemas de saúde de cada país com os “core values” europeus

O mundo mudou e o consumidor, seja este utente, beneficiário, cliente ou utilizador do sistema de saúde, como lhe quisermos chamar, é muito mais exigente na prontidão da resposta e na conveniência do acesso.

A Europa tem induzido a construção de um vasto consenso entre todos os países membros na adopção de uma trajectória que assegure a convergência dos respectivos sistemas de saúde em torno de quatro valores fundamentais: cobertura universal, solidariedade no financiamento, equidade no acesso e provisão de cuidados de elevada qualidade.

A questão essencial, no particular do sistema de saúde, é como continuar a melhorar os resultados face a um cenário de escassez de recursos, uma demografia exigente e uma inovação permanente.

Ninguém questiona, à direita ou à esquerda, acabar ou destruir o SNS como muitas vezes a irracionalidade da luta política pretende proclamar. Não vale a pena enfatizar uma discussão ideológica inútil de quem é ou não a favor do SNS. O SNS é uma marca da nossa democracia e ficou bem demonstrada a sua resiliência em recentes momentos de grande pressão orçamental. Isso não faz do SNS uma vaca sagrada que não permita discussões sobre as alternativas para viabilizar o seu futuro.

Volvidos 40 anos de uma experiência constitucional democrática enfrentamos uma boa oportunidade para iniciar uma reflexão profunda e alargada sobre a organização do sistema de saúde, planear a acção futura do SNS e avaliar a eficácia da sua governação. A extensão e importância do sector da Saúde exige um debate profundo sobre o papel do Estado, dada a sua pluralidade de facetas: o estado regulador, financiador, comprador de serviços ao mercado e, genericamente, o maior prestador de cuidados.

A moderna doutrina de administração pública comporta novos patamares de exigência quanto à intervenção do Estado. O Estado moderno faz escolhas racionais, aplica eficientemente os seus recursos e privilegia os resultados. É neste domínio que podemos e devemos encontrar um consenso alargado: o que deve fazer melhor o Estado? Quais os limites da sua intervenção? Como estruturar o modelo de governação do sistema de saúde e não apenas do SNS?

Com um sentido de enorme pragmatismo mas sem descurar os valores e os princípios presentes no texto constitucional é uma boa ocasião para que a sociedade portuguesa possa responder ao desafio lançado pelo Presidente da República, em linha com a sua estratégia de pacificar a sociedade portuguesa, discutindo abertamente este grande tema nacional. Dessa discussão poderão resultar os alicerces de um novo ciclo de politicas públicas, através da formulação de um Pacto para a Saúde, que a torne mais inclusiva, equitativa e sustentável.

A melhor forma de defender o sistema de saúde português e o seu SNS será construir um quadro de referência, estável e consensual, que permita acolher as novas dinâmicas da sociedade, sem rupturas nem riscos excessivos. Olhar para tudo o que nos une no sistema de saúde é a melhor garantia de sustentabilidade futura deste importante pilar do nosso estado social, para o qual a tranquilidade de um consenso social alargado representará uma valiosa mais valia.

A possibilidade de partilhar e alavancar a experiência e o conhecimento gerado no sistema de saúde português cria também, por si, uma excelente oportunidade de afirmação da economia portuguesa na arena do conhecimento e da criação de valor no plano da cooperação internacional.

“Todos temos um papel a desempenhar”

O momento é oportuno. A opinião pública, capturada pela agenda mediática da insignificância dos pequenos casos comentados à exaustão, precisa de discutir as questões essenciais.

A agenda política não pode ficar refém dos que muito opinam mas raramente apresentam soluções viáveis. Dos que se guiam pelos preconceitos e não pela criação de valor para o cidadão. É tempo de unir esforços, ultrapassar preconceitos e criar valor para o cidadão, ao mesmo tempo que podemos construir um caso de sucesso a partir do nosso sistema de saúde. O nosso objectivo primordial deverá colocar a tónica na promoção da saúde e no combate eficaz da doença.

Interessa, pois, centrarmo-nos na construção de uma ideia simples e de uma narrativa perceptível, suportada numa estratégia cristalina e linear, facilmente compreensível por toda a população.

O que falta às pessoas, hoje? O “sistema” peca pela sua despersonalização, não respeitando, por vezes, a dignidade dos que sofrem e aos quais não garante uma resposta adequada, o direito mais elementar de ser tratado a tempo e horas, com respeito pela sua liberdade de ser parte activa na escolha de uma solução.

Por vezes, são aspectos muito elementares que se podem mudar. Coisas tão simples como informar o doente do seu diagnóstico e discutir com ele a estratégia do seu tratamento. Oferecer-lhe uma solução quando este não tem médico de cuidados primários ou aquele não está disponível. Disponibilizar uma consulta de um médico especialista e exames rápidos para que não se atrase o diagnóstico. Guiar o doente no hospital para que este não se sinta perdido e isolado, como acontece a tanta gente. Providenciar um novo medicamento a um caso urgente e de excepção, sem ter de percorrer os corredores das infinitas autorizações. Garantir uma cirurgia em tempo útil, oferecendo alternativas.

Cada governante, autoridade ou agente do estado, cada funcionário e cada profissional têm como missão e responsabilidade de centrar o foco da sua acção na defesa da saúde do cidadão.

Por isso a agenda estratégica para a Saúde no século XXI deve observar o primado do cidadão e não o do sistema, a partilha da responsabilidade e não a prescrição autoritária, a conveniência em detrimento da rigidez da resposta burocrática.

A Agenda Estratégica para o Século XXI

É vital que o debate da nova agenda estratégica se faça com todos os stakeholders do sector da saúde. Todos somos convocados, mas desta vez é exigível a presença do cidadão, primeiro e último actor de um sistema que o deve servir e envolver em todos os passos da sua refundação. Há um caminho a fazer para a construção de um Pacto para a Saúde que deve impulsionar um clima de inovação e de desenvolvimento sustentável para o SNS do século XXI, que se deseja mais robusto, amigo do cidadão e melhor preparado para o futuro.

A desaceleração e estabilização da despesa pública em saúde, condição necessária para assegurar a sua sustentabilidade futura, coloca três questões vitais: 1 – como diversificar as fontes de financiamento do SNS? 2 – como limitar o crescimento dos seus custos fixos? 3 – como alterar o foco para a saúde em vez da doença?

Aqueles objectivos poderão ser prosseguidos através de uma estratégia que agrupamos em três reformas principais: Renovar a arquitectura do sistema de saúde; Modernizar a prestação de cuidados de saúde; Investir na informação.

1 – Renovar a arquitectura do sistema de saúde

Objectivo: Adaptar a arquitectura do sistema de saúde aos desafios do futuro, definindo quem faz o quê, separando as funções de financiamento e da prestação de cuidados, suportadas num modelo de governação transparente, participativo e profissional.

Governação geral do sistema de saúde: assegurar a estabilidade de políticas através da criação de uma direcção executiva, profissional e não política, do SNS, com mandato imune à alternância de governos;

Regulação independente: entender o papel do Ministro da Saúde como regulador geral do sistema de saúde e não apenas do SNS; reforçar o papel da Entidade Reguladora da Saúde e a sua independência face ao poder executivo, designadamente através da nomeação dos seus dirigentes por parte do Presidente da República ou da Assembleia da República;

Separar o financiamento da prestação de cuidados: concentrar todas as actividades de gestão do SNS num órgão de administração central do SNS; criar um órgão autónomo (Instituto Público?) especializado no Financiamento, que assegure a gestão dos contratos programa com as instituições do SNS e a gestão das convenções; Autonomizar a gestão da ADSE através de um novo enquadramento institucional, retirando-a de uma tutela administrativa e financeira de administração directa do estado, e possibilitando a adesão voluntária de um maior número de portugueses;

Recursos Humanos: Assegurar mecanismos de escolha independente e profissional dos Dirigentes e Gestores, com critérios objectivos e através de processos transparentes; Estabilidade das Carreiras Profissionais e institucionalização da avaliação de desempenho e dos prémios de mérito;

2 – Modernizar a prestação de cuidados de saúde

Objectivo: Estabelecer um Road Map para 10 anos, com um plano de transformação contínuo que assegure a implementação de uma gestão eficiente de todos os processos e entidades envolvidas na prestação de cuidados.

Exemplos:

Promoção da Saúde e prevenção da doença: afectar uma percentagem anual da despesa de saúde para investimento nos Programas de Saúde, com metas quantificadas e avaliação regular de resultados;

Gestão das Convenções: simplificar a adesão de prestadores e agilizar a gestão das convenções, estabelecendo parcerias estáveis com os convencionados, com avaliação periódica dos seus resultados e garantia de qualidade. Garantir a cobertura nacional e uma tabela de preços que seja comum para todo o universo de prestadores, sejam públicos, privados ou do sector social;

Investir nos cuidados primários: implementar soluções inovadoras nos cuidados primários que assegurem maior liberdade de escolha, com recurso a novos modelos de gestão e a eventual convenção de médicos de família para ampliar o acesso e fidelizar a relação médico-doente, em articulação com os ACES da respectiva zona de influência. Avaliação pública do desempenho, por unidade e por médico de familia, quanto a satisfação dos utentes, tempos de espera, capitação de prescrição de medicamentos e MCDT;

Parcerias Público-Privadas: consolidação dos projectos PPP e definição um quadro de referência para alargamento da rede PPP a novos hospitais do SNS, criando a oportunidade de um benchmarking contínuo. Internacionalizar a experiência dos projectos PPP em Portugal, alavancando o conhecimento adquirido em diversas competências, como a arquitectura e a engenharia hospitalar ou as tecnologias de informação;

Rede Hospitalar: alcançar uma lógica de funcionamento em rede, potenciando os centros de excelência existentes e alargando sucessivamente a oportunidade de escolha informada por parte do utente. Protocolização de todas as valências existentes na rede e sua ligação à rede de cuidados primários e cuidados continuados

Acesso ao medicamento: melhorar o desenvolvimento de modelos de partilha de sucesso terapêutico para os medicamentos de inovação; assegurar que o acesso ao medicamento é uma política pública transversal a todo o sistema de saúde;

3- Investir na Informação

Objectivo: Lançamento de uma grande iniciativa que parta da tecnologia como factor de desenvolvimento, criando uma organização digital – um eSNS -, que potencie o acesso e a troca de informação em todo o sistema de saúde, com segurança e rapidez, prosseguindo um maior nível de eficiência das organizações e uma melhor resposta aos utentes e utilizadores do sistema de saúde.

Exemplos:

Organização digital: criação de um programa arrojado de investimento, de médio e longo prazo, que coloque Portugal na liderança europeia das soluções digitais aplicadas ao sector da saúde, juntando a indústria das TIC, as universidades e os prestadores de cuidados e serviços de saúde. Evolução dos sistemas de gestão existentes para tecnologia web, desenvolvimento de um sistema de produção e faturação central que identifique e automatize todas as transacções ocorridas no sistema;

Integração Digital: fusão de competências e projectos existentes num novo desafio de construção de um Centro de Contacto modular que assegure a partilha de informação em saúde e a virtualização dos processos de gestão e prestação de cuidados, integrando plataformas como o Saúde 24 e o Centro de Conferência de Facturas, como suporte à informação na saúde e a novos formatos de interacção entre prestadores e utentes;

Registo de Saúde Electrónico: criação um serviço público do Registo de Saúde Electrónico consolidando o desenvolvimento de novas plataformas digitais que contribuam para a agilização da circulação da informação dos utentes, com acesso a qualquer hora e em qualquer lugar, designadamente na partilha da informação clínica, imagens médicas e sistemas de apoio à decisão;

Este é o meu contributo para a discussão.