Assinalando os 40 anos da Constituição e partindo da clássica grelha de análise usada pelo Professor Adriano Moreira na ciência política — sede do poder, forma do poder e ideologia ou imagem do poder –, procurar-se-á situar o órgão Presidente da República no nosso sistema de governo, bem como a sua possível evolução nos tempos mais próximos. Até porque um bom sistema de governo é sempre uma obra in fieri, um projeto em constante aperfeiçoamento.

Assim, entre nós, eleito por sufrágio direto e universal, o Presidente goza de uma legitimidade própria e pode, dentro de certos parâmetros, demitir o governo, bem como dissolver livremente o parlamento, limitado, nesse caso, apenas por balizas temporais.

O governo, esse, não depende politicamente do Presidente, mas sim do parlamento e tem competência exclusiva na condução da política geral do país. Tal significa que a relação entre o governo e o Presidente da República não é funcional, mas de responsabilização e confiança meramente institucional. Ou seja, o Presidente da República não é, no nosso quadro constitucional, um órgão de governo direto mas sim indireto, assistindo-lhe o papel de moderador político ou árbitro, perante os outros dois outros órgãos da nossa tríade de governação: parlamento e governo.

Quanto ao parlamento, o mesmo não pode demitir o Presidente, mas pode aprovar moções de censura ou de não confiança que acarretam, necessariamente, a demissão do governo. Ao mesmo tempo, a dependência do governo perante o parlamento não exige um apoio maioritário, mas apenas que não haja oposição maioritária (situação atualmente existente).

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Trata-se de um modelo a que Maurice Duverger chamou de diarquia ou águia de duas cabeças e Giovanni Sartori sistema de dois motores ou presidencialismo intermitente. Uma forma de governo que combina um Presidente eleito pelo povo, por sufrágio universal, com poderes significativos e sem dependência do parlamento e um primeiro-ministro e um governo que necessitam da confiança do parlamento e são responsáveis perante esse mesmo parlamento. Um sistema em que, perante governos minoritários, parlamentarmente frágeis, se acentua a capacidade de intervenção do Presidente, acentuando o pendor presidencialista e, face a governos maioritários, se acentua a vertente parlamentar.

Em suma, temos um sistema de governo misto, entre o parlamentarismo e presidencialismo, a que uns chamam semipresidencialismo e, outros, sistema misto parlamentar-presidencial ou parlamentarismo racionalizado.

Tal sistema foi aprovado em 2 de abril de 1976 e teve na sua génese o II pacto MFA/partidos, acordado em 2 de fevereiro do mesmo ano. Sendo curioso lembrar que este sistema de governo não foi inicialmente proposto por nenhum dos partidos (PS, PSD, CDS) que com ele vieram a governar. A proposta destes foi no sentido do parlamentarismo.

A opção, entretanto aprovada, traduziu quer os receios face ao parlamentarismo puro da Primeira República (Constituição de 1911) quer a experiência traumática do Estado Novo (Constituição 1933), com um presidencialismo de presidente do Conselho, encarnado na figura de Salazar. Isto é, a nossa opção pelo semipresidencialismo visou afastar quer o modelo parlamentar quer o modelo presidencial, existentes em muitos países do mundo, procurando seguir de perto o modelo francês da V República, resultante da Constituição de 1958.

Importará lembrar que o nosso sistema, entretanto, evoluiu face ao figurino inicial. Com efeito, com a revisão constitucional de 1982, desapareceu a responsabilidade política do governo perante o Presidente, afastando, desse modo, embora ligeiramente, o nosso sistema da sua inspiração francesa.

Em França, ao contrário do que acontece em Portugal, o Presidente tem uma efetiva interferência na governação interna, bem como amplas competências em matéria de política externa, segurança e defesa, presidindo, inclusive, por direito próprio, aos Conselhos de Ministros (cá isso apenas pode acontecer por acordo entre primeiro-ministro e Presidente da República).Em França também existe autonomia do governo face ao Presidente, mas, quer o primeiro-ministro quer o governo, têm de ser da confiança política do Presidente.

Será que o nosso sistema de governo, inicialmente parecido com o francês, mas ainda assim diverso, se poderá encaminhar, novamente para um afrancesamento?

É certo que, na forma do poder, o mesmo é dizer do ponto de vista normativo, nada se parece alterado, pois não tivemos recentemente qualquer revisão da Constituição. No entanto, quanto à sede do poder e à sua respetiva imagem, tudo parece possível e em aberto.

O nosso sistema, ainda assim, assenta no tal equilíbrio entre a legitimidade do governo, com origem na maioria parlamentar, e o protagonismo do Presidente, baseado na sua legitimidade direta.

Por outro lado, as três maiorias absolutas para o parlamento acentuaram a dimensão parlamentar do sistema de governo. Ou seja, face a governos amplamente suportados numa forte maioria parlamentar, diluiu-se a componente presidencial do sistema, ao ponto de muitos terem considerado que o nosso modelo caminhara para um parlamentarismo de chanceler à alemã. Ao presidente restariam, basicamente, funções protocolares de representação do Estado e de validade normativa do sistema, para além, naturalmente, dos poderes próprios que lhe cabem na organização do sistema político, judicial e militar.

Mas para avaliar o papel, o peso, a real influência do presidente na vida política do país, não basta conhecer as suas atribuições ou a descrição normativa das suas competências, torna-se necessário retomar a grelha de Adriano Moreira, observando a ideologia ou a imagem do poder. Está em causa a mensagem, a comunicação, a agenda, bem como a sua maior ou menor a proximidade ao povo. Saber, no fundo, como o presidente usará os clássicos poderes enunciados por Montesquieu no L´Ésprit des Lois: pouvoir de statuer e pouvoir d´empêcher.

Essa imagem corresponde, atualmente, a um presidente claramente ativo, determinado em assumir o seu papel no seio da arena política. Como o próprio disse na sua posse, sem prescindir dos poderes que a Constituição lhe outorga e sem querer ir além desses mesmos poderes.

Todos os sinais dos primeiros dias parecem apontar neste sentido. Constata-se um maior ativismo e presença política do presidente, querendo reunir diretamente com os ministros, acompanhar assuntos de política interna, nomeadamente, em matérias económico-sociais.

Perante um governo minoritário, suportado num acordo parlamentar, para alguns, frágil, mas que até agora tem dado sinais de enorme vitalidade e capacidade transformadora (goste-se ou não do sentido da transformação), como evoluirá o órgão presidente da república.

Serão os órgãos e o seu funcionamento, imunes à personalidade do seu titular? O adágio popular diz que o hábito faz o monge, será que aqui o titular faz o órgão? Será que, face à nossa história de personalização do poder, assente na figura singular do “chefe do Estado”, a imagem do poder não se transferirá, maioritariamente, para o presidente?

Ora, quanto maior for a expetativa sobre a capacidade do presidente resolver os problemas do povo, maior será a apetência para a consolidação da imagem do órgão presidente da república, com a eventual e consequente subalternização do órgão primeiro-ministro. Expetativa essa que parece ser, neste momento, muito elevada!

José Conde Rodrigues, professor universitário