Para apaziguar a minha revolta com o atraso recorrente deste comboio Lisboa-Porto considero uma brusca inversão de perspectiva: “quão inacreditável é a teia de cooperação humana que permite a comboio alguma vez sair a horas!”.

Doze insignificantes minutos de atraso depois, encosto-me e aprecio, à vista dos contentores empilhados no porto de Marvila, a intrincada dança colectiva que suporta o quotidiano moderno e pergunto, de onde lhe vem a música? Como puderam as centenas de indivíduos responsáveis pelo funcionamento deste comboio entrar em cooperação, muitos deles sem se sequer se conhecer?

Uma hipótese que tem tanto de empírica como de poética é a de Yuval Noah Harari: o professor israelita invadiu os escaparates mundiais quando alicerçou a sua “Brief History of Humankind” no poder de contarmos histórias: somos os animais que melhor conseguem colaborar de forma versátil e em largos números porque as sabemos contar e nelas acreditar a ponto de moldamos as nossas vidas em torno das mais poderosas: nação, religião, dinheiro – conceitos alarmantemente abstractos e imateriais – se pararmos para pensar.

Num plano ainda mais basilar, esta proeza emerge da capacidade humana de prever o comportamento dos outros e agir previsivelmente. A essa capacidade chamamos Confiança: uma das mais importantes palavras do dicionário apesar de não merecer honras como as reservadas a “Amor” e “Paixão” – tão mais celebradas quanto difíceis de definir.

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O termo “Confiança” é mais vezes esbanjado em letras garrafais junto a fotos de candidatos a cargos ou agentes imobiliários que tentam, com a cor da gravata, o penteado e o sorriso, reflectir-lhe o significado. E nós, habitantes do jardim murado que (ainda) é a civilização ocidental damos por garantida esta incrível capacidade de confiar em estranhos. Mas basta ver as notícias de tantas sociedades onde se deu uma erosão da confiança colectiva para entender a sua fragilidade.

Quando as histórias (novamente nação, religião, dinheiro) perdem a sua força, por vezes em escassos meses, as ruas tornam-se território selvagem e qualquer interação humana pode ser infrutífera ou até violenta. Confiança é, por isso, um tesouro da humanidade.

No contexto da revolução digital em curso, estamos a assistir à sucessiva (e irreversível?) integração ou representação de todos os tesouros humanos em chips de silicone – alguns codificam a nossa melhor literatura, outros as nossas comunicações mais íntimas. Pensando assim, não deverá causar admiração ter chegado a hora da Confiança passar para o domínio digital e deixar de depender de edifícios com colunas em mármore e apertos de mão firmes.

Em 2009, um Homero desconhecido (que, como o original, se desconfia ser um heterónimo colectivo e não uma pessoa de carne e osso) veio dar o contributo decisivo para esta viragem global. Em nove páginas, “Satochi Nakamoto” descreveu teoricamente o funcionamento de um sistema distribuído de registo e validação de transacções chamado Blockchain, cuja simplicidade e robustez matemática lhe granjeou aceitação nos meios académicos.

Em seguida, o seu apelo descentralizador e quase anarquizante capturou a imaginação da vanguarda digital e – sim – o potencial lucrativo do Bitcoin, a unidade monetária virtual que cria o sistema de incentivos necessário para o funcionamento de tal infra-estrutura, atraiu pontas-de-lança do sector financeiro.

Passámos, nesse momento, a poder transacionar e armazenar Valor sem a intervenção de uma terceira parte porque transferimos o suporte da nossa confiança para um sistema digital puramente autónomo, transparente e descentralizado – uma revolução que ultrapassa muito o âmbito da especulação financeira a que vemos o Blockchain e Bitcoin associados actualmente – mais semelhante à primeira vez que se ouviu a nona de Beethoven sair de “uns” e “zeros” de um CD: a primeira vez que alguém confiou algo valioso a simples “uns e zeros”.

A adição de uma camada de confiança à pilha de funcionalidades que compõe a web é o passo que a pode libertar do paradigma que tanto a desenvolveu até hoje mas que agora a estrangula: apesar de ubíqua e de fácil acesso, a web (e talvez a economia global) entrou há vários anos numa espiral centralizadora com empresas massivas (Amazon, Google, Facebook…) em poder financeiro e computacional e consequente monopólio sobre os dados dos utilizadores.

A possibilidade de interacções de valor seguras sem o aval e infra-estrutura fornecidos por tais entidades traz consigo um potencial descentralizador e baseado no indivíduo – uma revolução para toda a economia digital e não só (até porque num tempo em que todos temos que estar inscritos nem que seja nas finanças, a que partes da economia não chega o digital?).

Para uma comunidade ou sector ser um bom candidato a dar o salto para “a forma Blockchain de fazer as coisas” basta o interesse dos seus participantes em estabelecer regras claras e invioláveis e uma estrutura de incentivos de tal forma apelativa que garanta dinamismo. Depois, a natureza infinitamente escalável do digital e o grande fluxo de dados faz o resto.

A confirmar esta tendência, notícias semanais de uma mais uma área de actividade humana a ser palco de um primeiro ensaio na integração de tecnologia Blockchain. Depois de uma primeira vaga das mais óbvias como sistemas de votação ou registo de propriedades, a represa está prestes a ceder e este caudal de mudança está, já hoje, a permear sectores como a gestão de royalties ou a colecção de gatos virtuais.

Por esta altura, já devemos estar habituados a este sinal: quando uma tecnologia já apresenta um use-case com gatos fofinhos, sabemos que veio para ficar. O mundo vai mudar, mais uma vez.

A meio da viagem vou à carruagem bar e a funcionária relembra-me pela quarta vez este ano que não há multibanco. Consigo convencê-la a dar-me uma empada que pagarei à chegada a  Campanhã e pergunto-me se delegar a confiança nos algoritmos nos vai somar ou subtrair a humanidade. Por agora vamos navegando este tempo de transição e estranha co-existência entre o fim de uma era e o começo de outra.

Nascido em 1987, José Maria Pereira é Mestre em Música pelo Conservatório de Roterdão, tendo também frequentado o curso de Engenharia Electrotécnica e de Computadores da FCT-UNL.