1. Na teoria do direito canónico, desde há muito se forjou uma distinção fundamental, relativamente ao modo como a Igreja governa e corrige os seus membros — quando se trata, é claro, da observância da disciplina canónica dos preceitos e princípios religiosos (por exemplo, quanto à disciplina canónica da vida matrimonial). Essa distinção formula-se entre: “acrivia” e “economia”. Acrivia é o modo da precisão e do rigor no julgamento do cumprimento de uma norma; economia é o modo da concessão e da dispensa, quanto a esse cumprimento. A questão é muito complexa; mas, em termos simples, poderá traduzir-se assim esta distinção: rigor e precisão, no primeiro caso; ponderação, flexibilidade e gradualidade, no segundo.

2. E pode, ou não, lógica e moralmente, aplicar-se, qualquer um dos dois critérios, sempre e livremente à aplicação de quaisquer normas?
Quanto ao cumprimento, não pode. Porque há dois tipos distintos de normas: as “normas-regras” e as “normas-princípios”. As regras determinam um comportamento preciso e exigem um cumprimento preciso, que se resolve, em sim, ou não. Diferentemente, os princípios pedem, em concreto, não apenas um cumprimento “numa medida fixa mínima exigível”; mas sim “na maior e melhor medida do (concreta e equitativamente) possível”.

3. Assim, qual é, em cada caso concreto, na maior medida possível e em maior medida equitativa, o cumprimento exigível de um princípio, isso não está dito nem pode ser dito na norma-princípio. A maior, e a mais equitativa, medida possível de cumprimento, em cada caso concreto, tem de ser determinada pela análise prudencial das possibilidades práticas efectivas, em absoluto; e na medida relativa imposta pela equidade, no contexto circunstancial concreto.

4. Por exemplo, para julgar o cumprimento do princípio da liberdade, ou do da igualdade, ou do da solidariedade, num caso concreto, é forçoso primeiro determinar a medida concreta em que o princípio foi observado, quer em absoluto, quer equitativamente. E depois comparar, essa medida de concreta observância, com outras possibilidades concretas, em que seja possível ir mais longe no efectivo e equitativo cumprimento do princípio. Se for identificada esta outra possibilidade prática e concreta de ir mais longe e sem ofensa da equidade (note-se bem: se for identificada concretamente, e não apenas se for idealmente desejada), então, uma vez identificada essa possibilidade, é possível decidir contra a medida do cumprimento do princípio no caso em apreciação, visto que de facto se prova ser possível ir mais longe e melhor por uma outra opção concreta.

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5. Estando a ser julgadas medidas concretas de carácter económico e financeiro, é forçoso raciocinar e ponderar em termos económicos e financeiros: são esses os termos concretos da ponderação em causa. Assim, e em tese, na decisão do Tribunal Constitucional sobre medidas de política económica e financeira, sobretudo numa conjuntura de grave crise, o modo ou critério da decisão nunca pode ser o da “acrivia”, mas é sempre o da “economia”.

6. Curiosamente, tanto quanto sabemos (e, se estamos em erro, agradeceremos a quem nos corrigir), a nossa palavra “economia” vem do latim, “oeconomia”, que por sua vez vem do grego, “oikonomia”; palavra esta que é composta: de “oikos”, a casa com todos o seus bens e governo próprio; e de “nomos”, que significa norma, lei. Assim, a raiz grega, por via do latim, da nossa palavra “economia” significa um princípio normativo (nomos) de administração caseira (oikos) ou nacional. Esta administração não pede apenas um preciso acto concreto, localizado no tempo e isolado; mas sim uma continuidade de actos numerosos e entre-relacionados, numa racionalidade gestionária global em direcção a resultados complexos de bens e serviços para a colectividade, mas com custos e benefícios que nunca se repercutem igualmente para todos, individualmente.

7. Trata-se sem dúvida de uma arte do “melhor possível” sobre uma multidão de factores apenas ponderáveis, e de uma multidão pessoas que em concreto poderão ser umas beneficiadas e outras prejudicadas. Assim, o julgamento de cada acto de governação não pode ser separado do julgamento da inteira governação; e é, ele próprio, uma escolha de governação. Portanto, uma decisão judicativa crítica ou condenatória, em nome de princípios, sobre uma decisão concreta, implica sempre uma preferência de uma governação alternativa, em vista do máximo possível de observância de princípios. Razão teve portanto o venerando constitucionalista e insigne juiz do Tribunal Constitucional alemão, Ernst-Wolfgang Boeckenfoerde, em alertar para os perigos da invasão do Tribunal Constitucional nas legítimas competências legislativas e de governo das maiorias democráticas.

8. Nestas competências governativas (oeconomia), está em causa uma arte administrativa ou de gestão; que, sem dúvida, obviamente pressupõe muita «ciência social»; e deve respeitar normativas. Mas que nem por isso deixa de ser arte. Ora, julgar uma obra de arte é necessariamente um exercício artístico.
Conclusão: mesmo invocando princípios, só é possível julgar a “economia” (a do orçamento e da troika) em termos ou modo de “economia” (a da concessão, da dispensa e da gradualidade do direito canónico).

9. E como um Tribunal não pode julgar sem fundamentar; como o fundamento da sua decisão — sobre um concreto cumprimento de princípios — tem de ser a existência efectiva de uma outra solução melhor, concreta, possível e equitativa; e como de facto foi esta necessariamente a fundamentação da sua decisão; então deve isto mesmo constar claramente dessa fundamentação. Se essa hipótese prática de referência não está clara na fundamentação, se essa concreta alternativa de governação não ficou suficientemente clara para os órgãos de soberania que a tinham aprovado, então é curial que o Tribunal deva aclarar o fundamento da decisão.
O dever de clareza é um dever de “princípio fundamental” no exercício de poderes constitucionais, em Estado de Direito Democrático. Que deve portanto ser cumprido “na medida máxima possível”.
Nenhum órgão de soberania pode ser sibilino, mormente perante outros órgãos de soberania.

Professor jubilado, foi deputado à Assembleia Constituinte 1975/76